Anosognosia, ou o luxo dos grandes

O nosso lixo é um luxo. O luxo da negação de uma das maiores ameaças à vida como a conhecemos. “A natureza e a física não se deixam entreter pela vossa peça de teatro”, refere Greta, e a dimensão das consequências do nosso actual insustentável estilo de vida só tenderá a agravar-se até não haver mais espaço debaixo do tapete para as ocultar.

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Nuno Ferreira Santos

Anosognosia é um distúrbio neuropsiquiátrico caracterizado pela incapacidade cognitiva de reconhecer a própria doença. Geralmente consequência de danos cerebrais, nomeadamente no lobo parietal, pode surgir, por exemplo, como um paciente que não consegue movimentar um braço mas auto-reporta mobilidade perfeita desse membro.

Cruzei-me pela primeira vez com o conceito de anosognosia no livro O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano, do nosso António Damásio, e na crueza deste diagnóstico aninha-se poesia para um céptico da condição humana. Completa ignorância perante tudo o que ameaça a nossa existência como seres perfeitamente funcionais — é quase demasiado imediata a extrapolação deste conceito para outras esferas da realidade. Para mim, acordada para a emergência climática que já não nos bate à janela, mas entrou sim a rompante pela porta principal, vejo uma alegoria de anosognosia a materializar-se sem esforço na inacção política que caracteriza a estratégia para lidar com esta crise.

A 1 de Julho de 2021, Greta Thunberg discursou na Cimeira Mundial Austríaca, quase dois anos depois do seu discurso nas Nações Unidas que gerou palmas, ondas de controvérsia e bullying pouco adequado para uma adolescente com um planeta que lhe sangra nas mãos. Este ano, falou durante seis minutos e 50 segundos aos líderes políticos cujas assinaturas podem mudar o curso da humanidade.

Denuncia as medidas tomadas para combater a crise climática como uma representação de um papel que pretende apenas manter entretidas as massas que gritam por acção. Um jogar ao “faz-de-conta”, uma estratégia infrutífera que quase passa despercebida devido ao nível incrivelmente baixo de consciencialização das populações. Greta chama-lhes “tácticas de comunicação disfarçadas de política” (não será assim sempre?), tranquilizando os cidadãos “enquanto se alarga a brecha que vai desde a sua retórica à realidade.”

Este tom severo de Greta e a sua intolerância pela inércia política não são mais do que o desespero de alguém que vê a humanidade como os passageiros de um Titanic que se afunda rapidamente, enquanto as entidades políticas e legisladoras agem como a banda do navio que não cessa de tocar, como se o vibrar das cordas dos seus violinos secassem a água que impiedosamente nos invade os pulmões.

Por detrás dessa máscara de activismo político, as decisões dos líderes continuam motivadas pelo business as usual. Aqueles em posições de poder insistem em não reconhecer as sirenes que gritam por acção urgente e este estado auto-imposto de radical negação é o fenótipo mais comum de anosognosia.

Será patologia moral ou tratar-se-ão de hemorragias que emergem dos vasos industriais de maior calibre, grão-mestres que dominam as peças no xadrez das decisões políticas?

É, em todo o caso, luxo. Luxo daqueles que não se vêem desalojados por desastres climáticos, ou forçados a escolher que filho alimentar com o pouco que têm, ou sufocados na própria casa pela ausência de uma fonte de energia adequada para cozinhar. Fechar os olhos, tapar os ouvidos, cobrir os lábios em relação à metade do mundo que definha e se extingue para que a outra metade possa ver apaparicados todos os caprichos quotidianos que de forma conveniente alimentam a besta do capitalismo.

Varrer as verdades inconvenientes para debaixo de um tapete poderá ocultá-las de um ocasional visitante, mas o odor da putrefacção de acções políticas motivadas por interesses comodistas a curto prazo tenderá a alertar até o mais distraído dos cidadãos. Uma atitude anosognósica dissolve a percepção da deficiência que assola o organismo, mas não a cura, nem alivia o seu peso nos mecanismos de manutenção do sistema.

Os líderes das grandes potências mundiais banham-se no privilégio de poder virar as costas àqueles que sofrem as consequências da sua escolha voluntária de ignorar o problema. Os próprios cidadãos, classe média-alta dos países desenvolvidos, e joviais espectadores desta ópera desenhada para o seu conforto, são contagiados pelo alívio que a adopção da anosognosia traz ao seu quotidiano. Quando escolhemos comprar roupa e dispositivos electrónicos e outras comodidades de forma indiscriminada, escravos da dopamina que nos injecta satisfação de adquirir bens “porque posso”, estamos a usufruir deste privilégio de ignorar a linha de produção que conduziu ao produto final, as sweatshops (fábricas ou oficinas com condições de trabalho precárias), os abusos de direitos, o cuspir no conceito de dignidade humana e nos sistemas naturais.

O nosso lixo é um luxo. O luxo da negação de uma das maiores ameaças à vida como a conhecemos. “A natureza e a física não se deixam entreter pela vossa peça de teatro”, refere Greta, e a dimensão das consequências do nosso actual insustentável estilo de vida só tenderá a agravar-se até não haver mais espaço debaixo do tapete para as ocultar.

A anosognosia não cura o problema, mas o problema curará inevitavelmente a anosognosia.

Nas palavras de Greta, “the show is over” (em português, “o espectáculo terminou").

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