Lisboa: Resiliência e vulnerabilidade
Apesar da qualificação do espaço público, o perigo de destruição da vida real é a principal ameaça às comunidades. A vulnerabilidade de Lisboa está no facto de este processo ter encontrado um centro histórico em espera, disponível para uma mono-tematização da sua estrutura urbana. Onde antes existia pouca heterogeneidade é fácil fixar a absoluta homogeneidade.
A cidade é o lugar onde cultura e tecnologia, homem e natureza, se encontram e geram uma possibilidade de bem comum. É, ainda hoje, o lugar da promessa e do confronto, da coesão e da protecção, mas também da instabilidade e exclusão. O que prevalece sempre é o seu enorme potencial e capacidade de se aperfeiçoar.
Esta acção ganhou no último século uma complexidade que coloca o tema da cidade para além da sua força fundacional. Trata-se, eventualmente, do mais determinante tema de arquitectura e urbanismo do mundo contemporâneo – a capacidade de gerar lugares para a vida pública.
Estima-se que no ano de 2050, 75% da população mundial estará concentrada em cidades. Mesmo em cidades europeias, de lenta e coesa evolução morfológica, como é o caso de Lisboa com a sua matriz romana, islâmica, iluminista e um século XX que exponenciou o seu crescimento moderno, coloca-se hoje a pergunta a quem pensa a cidade: o que gera a resiliência e onde reside a vulnerabilidade?
A vida nas cidades europeias conheceu sempre a tensão entre a condição física do construído e os padrões de vida de rápida transformação. Lisboa enfrentou esse tema com particular intensidade na segunda metade do século XX. A sua expansão para o território a norte com projectos de inspiração internacional (Alvalade, Olivais e Chelas) provocou um abandono progressivo do centro. Este abandono foi ainda mais agravado com a mancha difusa, o sprawl, da área metropolitana, composta por acções dispersas de ocupação sem qualquer ambição sistémica para além das conexões rodoviárias. Este facto gerou uma população quantitativamente dominante nas periferias urbanas. Como consequência, a partir da década de 1960 uma nova forma de vida pública e a renovação geracional passaram a acontecer distante do centro.
Para definir um perfil de uma cidade será necessário participar do diálogo e do confronto entre a cultura urbana, ou seja, os padrões de vida, e a cultura urbanística, aquela que rege a condição física do construído. A cultura urbana incorpora toda a complexidade e variação próprias de cada momento da cidade, das suas crises e aspirações, enquanto que a cultura urbanística resulta de uma visão política que estrutura um território e recorre a instrumentos de planeamento.
Por vezes estas duas culturas estão em conflito e esse facto gera um perfil de cidade instável, dissociando a vida da forma da cidade, um fenómeno comum nos territórios onde existe menor capacidade de trabalhar os equipamentos e os espaços públicos. O conflito acontece também quando uma cidade incorpora os fluxos globais, sujeitos ao domínio do investimento privado, onde a noção de espaço se reduz ao espaço económico. Aqui a forma e a vida urbana divergem.
Lisboa, na sua contemporaneidade, parece ter assumido uma capacidade de compromisso entre forma e vida urbana talvez porque os instrumentos de planeamento se flexibilizaram procurando o caso específico e a resposta concreta a um problema ou possibilidade. Lisboa caracteriza-se por ser uma cidade onde a forma histórica chegou à contemporaneidade de um modo estruturante, referencial e habitável. Existem, contudo, vários territórios e tecidos sociais que poderão ser objecto de uma transformação positiva e que devem constar numa nova estratégica.
A resiliência significa que não há extinção – significa que uma cidade não se tornou arqueologia. O incêndio do Chiado em 1988 permitiu voltar a olhar para essa cidade e contrariar a perda de usos mistos e de vida pública. Com o projecto de Álvaro Siza voltou a ser possível ambicionar ocupações heterogéneas. A intervenção de Álvaro Siza reprograma os conteúdos do espaço interior dos quarteirões e dos edifícios – ou seja, as conexões do espaço público e os novos programas mistos. Foi, eventualmente, nos últimos anos, desde 2009, que os resultados desta visão e o seu legado se tornaram visíveis para os cidadãos. Apesar disso, vulnerabilidade é um dado presente. Nesse sentido, é sempre necessário garantir os valores do bem comum face às vicissitudes da economia.
O turismo parece ser a via privilegiada da retoma económica – mas esse é um caminho de regresso à monofuncionalidade dos ciclos anteriores e a uma artificialidade no confronto entre o nós e o outro. A indústria do turismo, se não for monitorizada, conduz a equívocos sobre a identidade de um lugar – e a identidade apoia-se naquilo que é herdado, mas está em contínua reelaboração.
Mas, apesar da qualificação do espaço público, o perigo de destruição da vida real é a principal ameaça às comunidades. A vulnerabilidade de Lisboa está no facto de este processo ter encontrado um centro histórico em espera, disponível para uma mono-tematização da sua estrutura urbana. Onde antes existia pouca heterogeneidade é fácil fixar a absoluta homogeneidade.
A vulnerabilidade reside também no facto de Portugal estar numa situação de crise social onde o trabalho foi desvalorizado, onde a opinião pública encontra dificuldades de participação. Nesse sentido, qualquer crise pode conduzir a política a uma mera técnica de gestão de forças de mercado abandonando a sua capacidade de lançar reptos com a devida contribuição das várias áreas de quem pode pensar a cidade. O desafio passa pela contribuição dos arquitectos, e outras áreas do conhecimento, para uma forma de pensar a reutilização, programas e estratégias que possam gerar significados colectivos. Este trabalho passa pela política capaz de fazer política afirmando, ou continuando a afirmar, a iniciativa privada e em simultâneo o domínio do público e do bem comum – escolas, centros de dia, residências de estudantes e habitação de interesse social. A vulnerabilidade maior é um processo de consumo e extinção.