Electricidade: mercado grossista ou grosseiro?
Quase não há “mercado” by the book, mas, de facto, uma “simulação” de vários mercados, nos quais a comercialização, só actuando numa franja de 2 a 3% da formação do preço, contribui com centenas de agentes que produzem milhares de ofertas com tipologias diversas e, na maioria dos casos, ilegíveis para o consumidor.
Os preços da electricidade no mercado grossista (MIBEL) atingiram 100,02 e 98,35 €/MWh, respectivamente, nos dias 18 e 25 de Junho. As médias diárias spot foram de 92,67 e 86,57 €/MWh.
Até meados de Junho do corrente ano, o preço médio diário atingiu 53,69 €/MWh. Em 2020 quedou-se nos 33,99 €/MWh. O aumento, até aqui, aponta para 58%.
Durante os anos transactos, 2018 teve os preços mais altos, nos 57,47 €/MWh, mas, já em 2008, o preço tinha chegado 70 €/MWh!
No dia 1 de Julho a ERSE actualizou o preço da tarifa de energia do mercado regulado em 5 euros por MWh, reflectindo a evolução verificada no verdadeiro carrossel de preços que é o MIBEL.
Do mercado grossista de electricidade, onde intervêm apenas alguns actores empresariais (cerca de cinco dezenas de agentes de mercado, grande parte na qualidade de comercializadores, e alguns produtores), resulta a componente energia que impacta a factura final lançada sobre os consumidores finais, mais notoriamente pelo seu número, nos domésticos BT (famílias).
Na factura final incidem, para além da energia, os custos relacionados com o uso e acesso às redes (tarifas reguladas), os CIEG – Custos de Interesse Geral Económico e, ainda, os impostos e taxas.
Na classe DC – que tem um maior número de consumidores domésticos de electricidade –, a decomposição de preços indica que a energia corresponde apenas a 33% e, dos restantes, 47 % devem-se às tarifas de uso de redes, significando os impostos e taxas cerca de 19%, onde avulta o IVA. Contudo, inserido na fracção do preço relacionado com as tarifas reguladas, constata-se que 27% provêm dos CIEG.
Grosso modo, os clientes pagam às comercializadoras valores facturados que derivam em 30% da electricidade (preço formado no mercado grossista + margem de comercialização), 50% é proveniente das tarifas reguladas fixadas pela ERSE, sendo os restantes 20% taxas e impostos, nas quais o IVA representa a grande parte.
Mas o preço da electricidade (energia) é formado no tal mercado grossista onde dominam meia centena de empresas comercializadoras e produtoras, grande parte delas com intrincadas ligações corporativas directas e indirectas. Ou seja, de facto, trata-se de um regime oligopolista. Acresce que as sessões diárias de mercado correspondem a exercícios (lances de oferta por postos horários) complexos, repletos de nuances e, sobretudo, ilegíveis para a esmagadora maioria dos cidadãos consumidores, mesmo para os que têm formação superior em economia e gestão. Explicar-se-á melhor mais adiante.
Depois, os 50% provenientes das tarifas reguladas referentes aos usos de rede (específicos e gerais) são determinados por algoritmos regulatórios elaboradíssimos, ou seja, não têm a ver com “mercado”, mas sim com conceitos e princípios como a aditividade e o marginalismo económico, com os quais se garante às concessionárias privadas das redes públicas um nível seguro e muito confortável de “proveitos garantidos”. Embutidos nessas tarifas reguladas, neste caso na tarifa UGS – Tarifa de Uso Global do Sistema, está uma enorme fatia proveniente dos CIEG que, 2021, representa 2011,7 milhões €, dizendo respeito a uma dúzia de itens (decididos pelos governos), onde avulta, no caso dos consumidores domésticos, o “diferencial “de custo com a aquisição de energia eléctrica a produtores em regime especial (PRE) mediante fontes de energia renovável, ou seja, a subsidiação das renováveis. Estas componentes do preço final geram uma receita que vai inteira para os produtores privados e para as concessionárias. Tudo é suportado pelos consumidores/clientes.
Finalmente, os impostos e taxas, cerca de 20%, onde avulta o IVA. A receita correspondente vai, esta sim, para o Estado e organismos reguladores.
Aspecto que tem um particular significado ético e político é o de várias entidades, públicas e privadas, colocarem os CIEG na componente dos impostos e taxas: trata-se de uma manipulação enganosa da informação dada aos cidadãos e consumidores. A DGEG, a ERSE, a AdC, o INE, entre outras entidades, deveriam corrigir esta grosseira falsidade.
Fora deste mercado, mas com peso crescente, ficam as contratualizações bilaterais (entre um produtor/comercializador e um grande consumidor empresarial): sobre este tipo de comércio desconhecem-se as condições estabelecidas, sabendo-se, apenas, que os fluxos de electricidade correlacionada têm de passar na rede pública de transporte, onerando-a.
Em síntese, quase não há “mercado” by the book, mas, de facto, uma “simulação” de vários mercados, nos quais a comercialização, só actuando numa franja de 2 a 3% da formação do preço, contribui com centenas de agentes que produzem milhares de ofertas com tipologias diversas e, na maioria dos casos, ilegíveis para o consumidor estonteado com tamanha e variada “oferta”.
À medida que o portfólio de produção/conversão de electricidade está mais preenchido com fontes renováveis e, portanto, com os custos variáveis a tenderem para zero, o muito sabido “mercado” grossista de electricidade, através da sua fórmula marginalista, marca o preço através do último KWh entrado na rede por determinação do “despacho”. Ora, como as últimas unidades a entrarem são as termoeléctricas, o preço do “mercado” diário tende a subir, não apenas devido aos custos variáveis influenciados pelos custos com os combustíveis usados (gás natural e carvão), mas, sobretudo, devido à precificação artificial do carbono (CO2) associado às emissões. O que determina o valor do “mercado” é, repete-se, o do último KWh a entrar. Assim, as produtoras privadas que colocam electricidade na rede produzida em hidroeléctricas (algumas delas já completamente amortizadas) recebem de acordo com o preço unitário de uma central a gás natural pesadamente taxada pelo carbono!
No caso português e espanhol (MIBEL), na base são normalmente colocadas as produções electronucleares e hidroeléctricas fio de água, porque são as mais baratas e, operacionalmente, aconselham a que isso assim se faça (até para não se perder a água, por exemplo).
Quase simultaneamente são colocadas todas as produções intermitentes (eólica, fotovoltaica, etc.,) principalmente aquelas que, por contrato, devem ser obrigatoriamente despacháveis (diz o lóbi, a APREN, que entram porque fazem lances pelo custo marginal zero!). Depois vêm as produções hidroeléctricas de albufeira e as FER intermitentes com contratos liberalizados. Finalmente, as mais caras e mais “poluentes”, ou, mais exactamente, as que emitem CO2 e vapor de água (que não é equivalente a poluição no sentido rigoroso do termo), isto é, ciclos combinados de gás natural e carvão. Pode haver pequenas afinações diárias, mas, em geral, será assim.
Num tal contexto parece justo afirmar-se que aquilo que o ecoliberalismo energético tem vindo a concretizar é uma narrativa grosseira.