Um deputado para cada cidadão?
Se os cidadãos, i.e., o povo enquanto titular do poder, não possui mecanismos de participação real nas decisões a não ser pelos institutos do referendo e plesbicito, como se sente representado?
Por mais absurda que a questão nos pareça, ela ganha forma quando avaliamos a expectativa dos cidadãos em face dos atores políticos. Afinal, quando elegemos representantes fazemo-lo de forma abstrata, ou antes procuramos quem esteja na cena política agindo como nós agiríamos?
As revoluções liberais foram responsáveis pela emergência de uma arquitetura do Estado e do poder público assente na delegação do poder em representantes legitima e legalmente eleitos pelo povo, na sua condição de verdadeiro titular do poder. A representação política tornou-se, então, num mecanismo de transferência de poder e de “voz” do povo, por tempo determinado e sujeito a uma avaliação/prestação de contas, para um conjunto alargado de representantes. Todavia, tal transferência não se impõe como produto acabado, mas antes como um processo permanente e frágil. Ideias de autogoverno, democracia direta ou de aprofundamento da democracia representativa (v.g. art.º 2.º, Constituição da República Portuguesa) tendem a ser vistas como estando limitadas pelo sistema representativo vigente, responsável pelo fosso entre eleitores e representantes, manifesto num descontentamento capitalizado pelos movimentos populistas e expresso na abstenção eleitoral.
Desse modo, a democracia representativa é tanto um garante do Estado de Direito Democrático quanto um limite ao sentimento de participação no processo decisório. Tal sentimento só é invertido num processo de aprofundamento democrático realizável por instituições e fóruns, aos quais o Estado dê a devida atenção e integre na produção de conhecimento afeto à decisão.
Todavia, quanto maior for o fórum de integração de vozes cidadãs, menor o grau de possibilidade de participação de cada sujeito, tendendo para a eleição de órgãos representantes das múltiplas vozes. Nesse sentido, tais espaços de integração produzem o mesmo afastamento que a vida política nacional. Assim, o sentimento de alheamento do processo decisório tende a ser traduzido na ideia de que após o exercício do direito de voto os cidadãos perdem a utilidade política.
Desse modo, se os cidadãos, i.e., o povo enquanto titular do poder, não possui mecanismos de participação real nas decisões a não ser pelos institutos do referendo e plesbicito, se constitucionalmente previstos, como se sente representado?
Esta pergunta abre uma discussão importante. Se os seus representantes – máxime os deputados – são efetivamente a representação dos cidadãos por via do voto, (i) deveria ser possível que as listas partidárias ao Parlamento fossem votadas no quadro dos mesmos círculos eleitorais, (ii) a prestação de contas deveria ser algo mais direto e além-voto. Ou seja, a avaliação do desempenho não se pode esgotar no instituto do voto, de modo a poder garantir um sentido de representação efetiva.
Representar é estar em vez de? Quando falamos, então, de representação verificamos um deslize da representação em abstrato, enquanto tradução de um quadro de valores, para a representação ao caso concreto. Ou seja, a “vontade do povo” só existiria se os seus representantes estivessem presentes e agissem como os cidadãos agiriam, i.e., em sua substituição. Esta situação implica uma relação de identidade, que vai demandando cada vez mais pela representação concreta ao invés da geral. Tal gera um problema maior do que a falta de aprofundamento da participação, e que seria uma representação por excesso. Assim, ao invés do ato eleitoral autorizar a representação num processo abrangente e abstrato em que o representante congrega um eleitorado díspar, a autorização, ou seja, a legitimação da representação só seria viável se cada eleitor se sentisse efetivamente representado no parlamento.
Ora, se o populismo se expressa, máxime, pela representação de vozes desalinhadas, de cidadãos que se consideram desconsiderados e não representados por uma “elite corrupta”, o político populista acabará, mais tarde ou mais cedo, preso a uma circunstância de impossibilidade de representação de agendas tão diversas. A partir do momento em que um movimento ou partido populista define de modo claro a sua ideologia e programa económico, político, social, judicial e cultural, gera necessariamente uma crise de representação. Isto porque os movimentos populistas que habitam o Ocidente mostram-nos que o seu eleitorado se vê representado por via do combate cultural e pela afirmação “de verdades politicamente incorretas”, pelo que tais políticos estão ali em vez do povo. Mas para que tal permaneça, o populista precisa ser ideologicamente plástico, capaz de agradar a eleitorados diversos e contraditórios e, portanto, encontrar-se disposto a agir como cada um dos seus eleitores agiria no seu lugar.
Como é irrealizável a ideia de representação em vez de, i.e., não podemos eleger um deputado para cada cidadão, de modo que este sinta que autorizou a representação, o caminho evidente é o do reforço da participação além do voto, incluindo a capacidade de os partidos se desburocratizarem e desmantelarem a engrenagem que favorece as linhagens e impede o ingresso, escolha e atuação dos cidadãos com base na capacidade. Assim, se não há um deputado para cada cidadão, importa que o deputado seja percecionado como sendo um cidadão.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico