A gestão do Património Cultural – o futuro da DGPC
A DGPC enferma de dificuldades sérias de recursos financeiros e humanos que limitam as suas capacidades de prestação de serviço público. Não se mascare, pois, as dificuldades atuais em modelos organizativos e com mudanças de diretores gerais ou complexidades de gestão.
No passado dia 25 de Junho, a ministra da Cultura exonerou Bernardo Alabaça do cargo de diretor geral do património cultural (DGPC). Os motivos publicamente invocados já foram desmentidos pelo mesmo. É já o segundo diretor geral de património exonerado pela atual ministra. O que se passa com a DGPC? Mas, mais importante, o que se passa com a política para o património cultural deste governo?
Património cultural é o conjunto tangível e intangível que corresponde ao reconhecimento, veiculação, interação e fruição presente de bens produzidos e vividos pelas gerações anteriores, assim como da valorização contemporânea da materialidade e imaterialidade, aos quais se reconhece o estatuto de valores a proteger. Assim, património cultural pode ser uma igreja, uma fortificação, um palácio, um castelo, um edifício industrial ou agrícola, um barco ou um coche, mas também uma pintura, uma escultura, um móvel, uma joia, um utensílio, uma peça de vestuário, ou ainda um documento, uma criação literária, uma tradição oral, uma música, uma peça de teatro, uma coreografia. Atualmente, percebe-se que, de alguma forma, a proteção do património natural – desde as paisagens aos mares, da flora e da fauna – é uma dinâmicas que não é alheia a uma ideia de património cultural, o que tem razão acrescida nesta fase da história do planeta a que se já propôs a classificação de Antropoceno.
Enfim, o património cultural revela-se por inúmeras manifestações. Dada a importância do património cultural – pois é através deste que se pode perceber as nossas raízes, a pluralidade do humano, os quadros de referência que pontuam as nossas vidas – tanto a nível internacional como nacional, existem normas que regulam o seu estatuto, formas de proteção e acesso.
São documentos de referência as Convenções da UNESCO de proteção do património edificado e do património imaterial, assim como do património afetado por situações de conflito, tráfico ou falta de conservação, a Convenção Quadro do Conselho da Europa relativa ao valor do património cultural (também conhecida como Convenção de Faro), a Lei de Bases do Património Cultural.
Em Portugal, a nível estatal, há diferentes entidades com responsabilidades na gestão do património cultural e outras que, não tendo como função direta a gestão de património cultural, detêm vastos acervos do mesmo. Assim, para além de entidades na órbita do Ministério da Cultura, nomeadamente, a Direção Geral do Património Cultural, a Direção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, a Biblioteca Nacional, os Teatros Nacionais, as Direções Regionais de Cultura, não podemos esquecer o papel e as responsabilidades das Regiões Autónomas e dos Municípios. O Ministério das Finanças, o Ministério da Defesa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Ministério da Justiça, nomeadamente, são detentores de património edificado e património móvel de grande relevância, assim como universidades públicas, o Banco de Portugal e Caixa Geral de Depósitos. Uma articulação mais coerente de todos estes acervos, assim como das aquisições de bens culturais por parte do Estado, seria recomendável, não só para ter uma noção sistémica do património cultural do Estado como da política de valorização do mesmo, nomeadamente, através de uma visão sistémica, com prioridades definidas, das opções aquisitivas, de forma a beneficiar os ativos prioritários e evitar a dispersão de despesa, por vezes, arbitrária.
A salvaguarda do património cultural é uma tarefa coletiva. Se, por um lado, o Estado tem particulares responsabilidades nesta matéria, os cidadãos em geral têm obrigações sobre o mesmo, nomeadamente, instituições que detêm acervos patrimoniais importantes, como no caso português a Igreja Católica e algumas fundações.
Em democracia, a responsabilidade estatal pela gestão do património cultural, desde a década de 70 do século passado, passou por sucessivas concentrações, fusões e divisões de serviços. A mais recente reorganização é de 2011, concentrando o então Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (Igespar), o Instituto de Museus e Conservação (IMC) e a Direção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo (DRCLVT) na Direção Geral do Património Cultural.
Agora, o Grupo de Projeto Museus no Futuro, criado pela Resolução do Conselho de Ministros 35/2019, vem no seu Relatório Final, de julho de 2020, evidenciar muitas dificuldades do sistema museológico público e propor a divisão da DGPC, separando a componente museológica, palácios e monumentos, da restante estrutura.
O Relatório, sendo consistente e bem elaborado, revela dados sobre os quais importa refletir e não deixa de ter alguns enviesamentos que vale a pena comentar.
Começando pelos dados. Na sequência da revisão e harmonização dos sistemas de preços e bilhética dos museus, palácios e sítios na tutela da Direção Geral do Património Cultural (DGPC) e Direções Regionais de Cultura (DRC), que tomei a iniciativa de promover quando tive a tutela da Cultura, e do aumento significativo do turismo estrangeiro nos últimos dez anos, as receitas próprias destas entidades subiram de forma significativa, com destaque para a DGPC.
Assim, dos 21 milhões de euros de despesas com museus, palácios e monumentos (2018), 58,5% são com pessoal e 27,6% com aquisição de bens e serviços. 91% das receitas próprias resultam de ingressos – 17 milhões de euros. Ou seja, grosso modo, a DGPC beneficia de 18 milhões de euros de receitas só na área dos Museus, Palácios e Monumentos, face a um orçamento total executado de 32,6 milhões de euros – mais de metade do seu orçamento são receitas próprias.
São apontadas dificuldades graves ao nível do pessoal – por um lado, o seu envelhecimento, por outro, a inexistência de recursos básicos para manter os serviços em funcionamento e abertos ao público. São apontadas dificuldades no modelo de gestão face aos constrangimentos jurídicos colocados a um organismo da administração pública direta do Estado e dificuldades internas de comunicação, atraso nas respostas e decisões.
Quanto aos enviesamentos: a atual estrutura da DGPC é considerada “gigante”, “modelo falhado”, exageradamente complexa, propondo-se a criação do Instituto de Museus, Palácios e Monumentos. Se a transformação da DGPC em Instituto de Gestão do Património Cultural faz sentido, pela agilização das suas competências, a divisão do mesmo não. Esta divisão corresponde a uma ânsia corporativa dos diretores de museus e conservadores, espelhada no Relatório. A visão é enviesada porque este relatório não faz, como devia fazer, uma análise comparativa internacional de modelos de gestão. Se fizesse, poderia ver que, em França – tantas vezes apontada como exemplo modelar para as políticas públicas de Cultura –, desde 2010, existe uma única direção geral que fundiu as competências da direção geral dos museus de França, da direção geral de arquitetura e património, da direção geral de arquivos. Aliás, o Ministério da Cultura de França só tem quatro direções gerais. Para além da referida, a direção geral da criação artística, a direção geral dos media e indústrias culturais e a secretaria geral.
Não se mascare, pois, as dificuldades atuais em modelos organizativos e com mudanças de diretores gerais ou complexidades de gestão.
A DGPC enferma de dificuldades sérias de recursos financeiros e humanos que limitam as suas capacidades de prestação de serviço público e de um envelhecimento do seu pessoal, sem transmissão de saberes pelos que, entretanto, se vão reformando, às gerações mais novas. Espera-se que haja consciência do interesse público em presença e que não se continue a mascarar a realidade com decisões paliativas e justificações que raiam a demagogia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico