Na quarta-feira, 16 de Junho, a SIC Notícias emitiu uma reportagem sobre a situação precária dos investigadores portugueses, no âmbito do programa Essencial. Antes de mais, é importante enaltecer a acuidade com que esta rubrica retratou o panorama vivido actualmente pela maior parte dos trabalhadores científicos em Portugal, dando oportunidade a vários intervenientes de descreverem a realidade extremamente desafiante e incerta que têm enfrentando na última década.
Ao longo do programa, o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, usufruiu também da oportunidade de discutir algumas das reivindicações dos bolseiros de investigação em Portugal, nomeadamente a revogação do estatuto de bolseiro e a substituição das bolsas por contratos de trabalho. Em resposta a esta questão, o ministro utilizou um argumento que já não é novo e que tem sido reiterado não só por ele, mas também por outros deputados do Partido Socialista na Assembleia da República. O argumento é: “Na fase em que são estudantes, até terem o doutoramento … não devem ter um contrato de trabalho. Devem ter uma bolsa… obviamente é a única forma de lhes dar total liberdade de acção e de pensamento, porque o contrato de trabalho não dá.” Este argumento plenamente político, que se posiciona no limiar da demagogia, apenas visa convencer a opinião pública de uma premissa muito simples: faz algum sentido alguém que está a ser pago para estudar ter um contrato de trabalho?
Mas a já conhecida costela camaleónica do ministro Manuel Heitor permite-lhe ser muito hábil a esconder a realidade da liberdade dos bolseiros de investigação, facilmente reconhecida por qualquer pessoa que conheça o sistema científico em Portugal. Em primeiro lugar, a ideia de liberdade total de pensamento e acção, garantida por uma bolsa de investigação, é desde logo altamente romantizada, para não dizer falaciosa. O vínculo de bolseiro continua a implicar a existência de uma entidade de acolhimento e de orientadores que estão envolvidos na definição do plano de actividades dos bolseiros.
Uma parte significativa das bolsas de investigação é atribuída no âmbito de projectos já desenhados ou a decorrer, onde os bolseiros são recrutados para executar actividades pendentes, em que a liberdade de pensar ou criar ciência não é de todo o foco do trabalho desenvolvido. Além disso, é amplamente comum que as unidades de investigação envolvam os bolseiros em tarefas de gestão e, por vezes, nas próprias actividades lectivas das instituições, mesmo que não sejam remunerados por isso. Isto sem esquecer uma das principais barreiras à liberdade dos bolseiros, que se prende com a necessidade constante de elaborar candidaturas a financiamento, com o objectivo de angariar verbas para assegurar o seu próprio vínculo assim que a bolsa terminar. Esta realidade é particularmente preocupante dado que a ausência de um contrato de trabalho impossibilita os bolseiros de investigação de terem direito a subsídio de desemprego no final do seu vínculo.
Além da liberdade de pensamento e actuação no contexto científico, o ministro prefere sempre omitir uma série de condicionantes no estatuto de bolseiro que condicionam outras liberdades individuais dos bolseiros. Manuel Heitor gosta de utilizar o termo “benefícios fiscais”, mas a inexistência de um contrato de trabalho com os respectivos descontos para a Segurança Social e Finanças impedem os bolseiros de aceder a uma protecção social adequada, além de restringir amplamente questões tão simples como o acesso a um cartão de crédito ou a um empréstimo bancário, mesmo quando direccionado a pequenas aquisições como a compra de um computador para utilização em contexto profissional.
O senhor ministro não refere também o regime de exclusividade obrigatório extremamente restrito ao qual todos os bolseiros estão sujeitos, sem qualquer opção de abdicar dessa exclusividade ou sem receberem qualquer benefício no valor da bolsa em detrimento dessa exclusividade. Existirá alguma área profissional em Portugal em que esta realidade ocorre, especialmente no sector público? Existirá mais alguma área em que após um vínculo de quatro anos com exclusividade e dedicação a tempo integral, essa pessoa não tenha direito a subsídio de desemprego? E, se os bolseiros de investigação são acima de tudo estudantes, como o senhor ministro quer pintar, qual o racional para restringir as suas actividades profissionais?
A liberdade para pensar e agir no contexto científico, além de ser independente do vínculo contratual, é simplesmente inócua se não for acompanhada pela liberdade para exercer uma cidadania plena. A liberdade constrói-se através de um regime de estabilidade laboral e criação de condições para integração na carreira, e não através de sistema científico que promove a precariedade dos investigadores jovens através de vínculos de bolseiro, com exclusividade e que não asseguram uma protecção social adequada.
Agora resta-nos tentar perceber se esta narrativa promovida pelo ministro Manuel Heitor é proveniente da sua própria liberdade de pensamento. Tendo em conta o seu vínculo profissional, suspeito que esta narrativa possa estar a ser condicionada por pressões externas. Talvez seja a pressão do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, que tem muito interesse em financiar a investigação e até a actividade docente das instituições através de vínculos precários que são menos dispendiosos e largamente assegurados pelas verbas da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Ou talvez seja o próprio primeiro-ministro que não cede nem mais um tostão para financiar a ciência em Portugal, dado que Manuel Heitor foi muito enfático na finitude dos recursos públicos. Mas independentemente de quais sejam as fontes da restrição da liberdade de pensamento do senhor ministro, talvez seja altura de lhe atribuir uma bolsa. Talvez dessa forma seja possível que ele tenha liberdade para pensar num sistema científico justo, competitivo e que valorize realmente os trabalhadores científicos portugueses.