Sobre leis, castelos e corais
O facto de como sociedade decidirmos tamanha proteção a uma espécie de coral é para mim uma enorme esperança que vai para além da letra de lei.
Disse-me um dia um dia o meu querido amigo Thomas, jurista de formação e vocação, que as leis eram os castelos da atualidade. Em estado de paz, em democracia, uma lei bem feita protege mais gente, mais recursos, mais património, do que qualquer muro, vedação, forte ou castelo.
Os níveis de consenso dos assuntos a legislar são muito díspares e alguns deles geram discussões às quais chamamos fraturantes. Estes emanam de opiniões diferentes sobre prioridades e fazem-nos esperar por melhores ventos políticos para levarmos a água ao nosso moinho. Às vezes precisamos apenas de mais tempo, como sociedade, para que os assuntos a legislar atinjam importância suficiente para que sejam discutidos até um nível em que possamos tomar decisões coletivas.
Temos assistido, por exemplo, a um aumento rápido de importância de temas relacionados com o bem-estar animal, com algum travão quando estes colidem com as atividades agro-alimentares e com a tradição das touradas, ou do tema das alterações climáticas, com o travão da produção ou soberania energética.
Já proteger habitats e espécies selvagens – matos, fungos, sanguessugas ou ervas – tem sido feito mais a reboque da transposição de diretivas europeias e convenções internacionais das quais somos signatários, não havendo ainda uma consciência coletiva madura desta necessidade de proteção, seja esta pela manutenção dos serviços que esses ecossistemas e espécies nos prestam, seja tão-só pela preservação de um património natural para o futuro.
Claro que será a educação ambiental, parte integrante de uma cidadania ativa, que nos irá ajudar a subir estas preocupações na lista de prioridades da sociedade. Fica por saber para que espécies e ecossistemas esta subida nas prioridades se fará a tempo. Pelo limiar do século XX, o tigre-da-tasmânia passou de espécie daninha, com a cabeça literalmente a prémio, a espécie legalmente protegida. Mas já não foi a tempo. Extinguiu-se em 1936.
Escrevo sugestionado pela recente publicação do Decreto-Lei 38/2021 que “aprova o regime jurídico aplicável à proteção e à conservação da flora e da fauna selvagens e dos habitats naturais das espécies enumeradas nas Convenções de Berna e de Bona”. Mais do que um cumprir de obrigações legais com as convenções de que Portugal é signatário, o documento passar a dar proteção legal a várias outras espécies, como os cavalos-marinhos, os pepinos-do-mar ou os corais, cujas populações têm sido devastadas, também por falta de legislação robusta que as proteja.
Estabelecer um enquadramento legal que permite punir, por exemplo, a apanha furtiva de coral vermelho – que demora dezenas de anos a crescer – com uma contraordenação ambiental muito grave, passível de coima até cinco milhões de euros (se praticada por pessoa coletiva com dolo), fará provavelmente mais pela preservação da espécie em Portugal do que vários anos de educação ambiental sobre os ecossistemas de recifes de profundidade de que esta espécie faz parte.
Há mais de 20 anos que estudo e ensino ecologia e conservação a futuros biólogos. O facto de como sociedade decidirmos tamanha proteção a uma espécie de coral é para mim uma enorme esperança que vai para além da letra de lei. Significa que como sociedade já fizemos com que a conservação de espécies e habitats subisse uns degraus na nossa hierarquia de prioridades. E fará muito mais pelos corais e pelo pensamento político ambiental do que todas as aulas que dei a ajudar a formar futuros profissionais nesta área.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico