Paulo Mendes da Rocha: da generosidade à eternidade
A arquitetura do Paulo tinha essa característica de perdurar, porque não era construída na circunstância do momento, mas no entendimento da própria existência humana.
Existem pessoas que perduram para além do seu próprio tempo. O Paulo Mendes da Rocha era um deles. Era um gigante, eternamente!
Aqueles que lidavam com o Paulo tinham uma consciente ilusão de achar que seria eterno. E, na realidade, será. As suas obras continuam a fazer cidade, cumprindo a missão para a qual foram pensadas e idealizadas, “a de ampararem a imprevisibilidade da vida”, prolongando no tempo o seu legado. A arquitetura do Paulo tinha essa característica de perdurar, porque não era construída na circunstância do momento, mas no entendimento da própria existência humana. E a existência é eterna, tal como a sua obra é universal, uma referência cultural que nos lembra o indizível: a arquitetura, quando idealista e corajosa, emana dimensão política.
Mas o Paulo era muito mais do que um construtor de maravilhosas obras a que se rendiam os seus pares um pouco por todo o mundo. A essa condição de liberdade a que a arquitetura aspira e que neste caso aparece enormemente conquistada, junta-se uma outra condição, a do seu inconformismo, que fez de Paulo Mendes da Rocha uma personalidade capaz de produzir transformações, de fazer a mudança.
O reconhecimento da sua obra e da sua pessoa fez-se por todo o mundo, apesar da quase totalidade da sua obra estar construída no Brasil. É exceção a Casa do Quelhas e o Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, onde tive o privilégio de ser coautor do projeto expositivo. Este projeto deu origem, a partir de uma equipa de profissionais, a um grupo de amigos que no Brasil ficou conhecido como “os amigos portugueses”.
Juntos tivemos a oportunidade de inventar muitas coisas, encontrando-nos sempre que era possível nas mais diversas geografias, em distintos momentos, quando era distinguido e agraciado por inúmeros prémios de carreira, entre o Leão de Ouro da Bienal de Veneza e a Medalha de Ouro de 2017 do Royal Institute of British Architects (RIBA). Eram momentos de encontro, de conversas infindáveis, de um prazer imenso, numa troca de ideias de que saíamos sempre a ganhar pela descoberta contínua que fazíamos, sobretudo a partir da aprendizagem que recebíamos do Paulo.
O reconhecimento mundial fez do Paulo Mendes da Rocha um elo de ligação, de diálogo entre dois mundos — o “mundo novo” da América Latina, do país da Amazónia, da Mata Atlântica, de Brasília e de São Paulo, um contraponto ao “velho mundo” da Europa, ambos com capacidade de se ajustarem e de necessariamente melhorarem.
A generosidade, outra expressão fulcral do Paulo, contaminou a sua obra ao longo do tempo. Em Lisboa, no Museu dos Coches decidiu, num gesto fluido e intencional como tudo o que fez, elevar o edifício oferecendo uma praça coberta à cidade e a quem visita o museu.
Com essa enorme generosidade, aliada à capacidade de estabelecer pontes entre as diversas realidades e tempos, Paulo Mendes da Rocha decidiu doar todo o seu acervo documental à Casa da Arquitectura - Centro Português de Arquitectura, em Matosinhos.
Enquanto a sua obra construída — um enorme património coletivo — está quase toda no Brasil e um pouco em Lisboa, o seu património documental está agora em Portugal. Paulo juntou o “novo e o velho mundo” e em ambos teve um enorme reconhecimento, sem que para ele isso fosse importante.
A sua obra perdurará na cidade e no tempo da arquitetura, mas o Paulo perdurará também pelo seu acervo, pois ele está vivo e recomenda-se. Brevemente estará disponível para consulta no Edifício Digital da Casa da Arquitectura para que possa ser estudado a partir de qualquer parte do mundo, cumprindo um dos objetivos do Paulo: o de democratizar o acesso à arquitetura, também a partir do seu próprio arquivo.
Portugal, através do Governo de então, convidou Paulo Mendes da Rocha a projetar em Lisboa. O Paulo ofereceu a sua visão, o talento e o engenho. Mas foi mais longe, com a sua generosidade, ofereceu todo o seu património documental a Portugal. Cabe-nos agora cuidar desse património documental e construído. Portugal deve-lhe isso!
Neste momento de consternação coletiva pela morte desta personalidade singular, vem-me à memória uma citação que, não sendo do Paulo, foi por ele apropriada: “Sabemos que vamos morrer, mas não nascemos para morrer, nascemos para continuar”!
O seu legado é um património universal, é uma responsabilidade de todos, aquém e além-mar.
Seguramente nunca será esquecido, porque a história não esquece os seus heróis, esses a quem chamamos gigantes, esses a quem o tempo chama eternos.