Museus de história natural e a biodiversidade – uma relação simbiótica
Estima-se que em Portugal as coleções dos três principais museus de história natural atinjam cerca de três milhões de espécimes. Estes acervos são uma ferramenta fundamental e insubstituível para o estudo e preservação da biodiversidade do nosso planeta.
Este ano o tema do Dia Internacional dos Museus foca-se no futuro dos museus e em como estes podem ser recuperados e re-imaginados para o futuro. Os museus têm mais de futuro do que de passado e, não obstante da imagem empoeirada e estática que temos deles, é nos seus laboratórios e reservas que se respondem a questões fundamentais do presente, e se preparam descobertas do futuro.
Esta atividade de investigação é patente na maioria dos museus, mas é mais marcada nos museus de história natural. Pela natureza das suas coleções, pelos seus atores, ou ainda devido à sua história institucional complexa, estas instituições têm sido pouco compreendidas pela comunidade museológica. No entanto, há também questões de escala e uso das suas coleções que os diferenciam dos seus congéneres dedicados às artes e humanidades. O volume das suas coleções é largamente superior e o seu uso prende-se muito mais com investigação no âmbito das ciências naturais.
Os herbários são um exemplo bastante claro desta situação. Compostos por espécimes de plantas preservadas, os três maiores herbários nacionais cifram um total aproximado de um milhão e 500 mil espécimes oriundos de todo o mundo. O maior, o da Universidade de Coimbra, têm aproximadamente 800 mil exemplares; os da Universidade de Lisboa, cerca de 600 mil; e o da Universidade do Porto, 100 mil. Estes números são impressionantes e obrigam-nos a repensar a forma como encaramos estas coleções.
Só o herbário da Universidade do Porto (e que representa apenas cerca de 1/6 das coleções biológicas do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto) têm mais espécimes do que vários museus nacionais juntos têm de acervo total. Mas estes valores são estéreis se não forem contextualizados e explicados. Cada um destes espécimes representa a ocorrência de uma determinada espécie, num determinado local e em determinada data. São o testemunho material da existência dessa espécie no planeta, e permitem responder a uma miríade de perguntas científicas, muitas delas com inquestionável relevância para os problemas que a humanidade hoje enfrenta – alterações climáticas, pandemias, procura de novos compostos químico-farmacêuticos ou soluções para a alimentação de uma população humana em crescimento imparável, etc.
No entanto, uma considerável percentagem (nunca inferior a 10 a 20%) destas coleções encontra-se ainda hoje inteiramente por estudar. Estão nos herbários apenas com a informação com que vieram do campo, e quem sabe as descobertas que aguardam quem as venha a estudar, bem como o impacto dessas descobertas na sociedade. Esta percentagem não surpreende quem lida diariamente com estas coleções.
Um número reduzidíssimo de investigadores, curadores e técnicos luta diariamente para manter as coleções acessíveis ao público e cientificamente atualizadas e relevantes, sobrando-lhes muito pouco para poderem de facto fazer aquilo para que foram treinados e contratados – investigar a coleção e trazer à ciência e sociedade os resultados desses trabalhos. Para o milhão e meio de espécimes de herbário em Portugal, contamos com menos de dez funcionários, boa parte deles em situação laboral precária.
Tudo o que escrevi acima sobre herbários aplica-se às demais coleções dos nossos museus de história natural, particularmente às coleções zoológicas, geológicas e paleontológicas. Em conjunto com o acervo dos herbários, estima-se que em Portugal as coleções dos três principais museus de história natural (hoje todos eles “e da Ciência”) atinjam cerca de três milhões de espécimes.
Estes acervos são uma ferramenta fundamental e insubstituível para o estudo e preservação da biodiversidade do nosso planeta. Atualmente estão descritas cerca de dois milhões de espécies de animais, plantas e fungos. As estimativas mais conservadoras apontam que existam cerca de oito a nove milhões de espécies, o que significa que nos falta descrever e conhecer, pelo menos, mais seis milhões. Em 2019, o relatório das Nações Unidas sobre o estado da biodiversidade mundial apontava-nos para uma proporção sinistramente inversa – cerca 3/4 das espécies do planeta encontram-se ameaçadas de extinção devido à ação humana.
A tarefa de descobrir, catalogar e descrever a biodiversidade do planeta é a tarefa primordial dos museus de história natural desde a sua génese – e não se faz sem eles. Só a presença dos espécimes nos museus garante a objetividade e replicabilidade necessária à ciência da taxonomia – o ramo da biologia dedicado ao estudo e descrição das espécies. São as coleções dos museus que permitem aos investigadores estudar, comparar e por fim decidir se determinada espécie é ou não verdadeira. Os museus portugueses guardam a prova destas descrições, e não têm sido poucas as vezes, só nos últimos anos, que novas espécies têm sido descritas com base nas suas coleções.
Se o reconhecer que as espécies existem é o primeiro passo efetivo para a sua conservação, as demais ações de conservação beneficiam de um sem número de abordagens às coleções de história natural, que, como bibliotecas, oferecem resposta a quem perder tempo a ler os seus livros.
Na atual crise mundial em que vivemos, em que a ameaça das alterações climáticas é apenas a ponta do icebergue dos problemas que nos esperam num futuro onde a extinção de uma parte da biodiversidade mundial conduzirá ao colapso dos sistemas ecológicos que sustentam o planeta e a nossa civilização, o estudo e o conhecimento da biodiversidade é uma das prioridades da humanidade. A resposta aos problemas que enfrentamos só é possível se utilizarmos o potencial disponível nas nossas coleções e museus. Para lá de locais de ensino ou exposição, os museus são necessários na linha da frente da investigação científica.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico