Energia vital no ensino: um ideal (4)
Para uma sociedade mais democrática, para uma Democracia mais forte, que possa ter armas para combater a investida dos extremismos, à esquerda e à direita, é na escola – no ensino, na educação – que está a solução para problemas futuros.
“Os alunos só aprendem com alegria. O computador está a matar essa alegria.”
De um professor de Matemática
Se o pensamento é o todo inicial, que a neurofisiologia moderna coloca no hemisfério esquerdo, esse primum movens fica posto em causa com os usos e abusos das novas tecnologias, potenciadoras da novilíngua, espelho da crise do pensamento entre as gerações mais novas, filhas do “trash english”. Mais de dois mil milhões de seres humanos falam inglês, a globalização arregimentou milhões para aquilo que, já nos anos 80, através da televisão, era para Karl Jaspers a nova ditadura: nos EUA a obesidade reflecte o sedentarismo dos mais novos: “Ver televisão produz uma grande passividade no plano físico [...], estudos revelaram uma baixa de metabolismo entre os telespectadores, especialmente em crianças já obesas. [...] Em geral, as crianças começam a ver desenhos animados aos dois anos. Aos seis, 90% das crianças são clientes habituais da TV. Aos 11 são as sit com (situation comedies) que as conquistam [...]” (Jaspers, A Televisão: Um perigo para a democracia, Gradiva, Lx, 1992, p.p.40-41).
A agressividade, a apatia, a violência, a insensibilidade, eis o resultado óbvio do contacto com o ecrã. Não são factos indissociáveis, estes: a formatação linguística, o império do trash english (não é o inglês de Shakespeare, nem o de Ben Johnson, nem o de Whitman, ou o de Eliot o que as crianças aprendem na escola – é o inglês turístico, imediato) é o outro lado da investida totalitária que, de há cinquenta anos a esta parte, encontrou na nova “medusa”, a TV, (a expressão é de Wladimir Porché, nos encontros de leitura de 1958, in Esta en Peligro la Cultura?, Coleccion Guadarrama de Crítica y Ensaio, Madrid, 1958, pp. 107-131), guarda avançada do mercado para alienar e controlar as massas.
Tenho escrito para pais, professores, alunos, até mesmo para o primeiro-ministro e para o ministro da Educação. Por vezes para a ministra da Cultura. Não ignoro a dificuldade com que, neste tempo terrível, governam, orientam, decidem. Mas é urgente que – para se governar melhor, orientar de forma mais lúcida e decidir de forma célere e com bom senso –, no caso da educação, não se ignore a realidade das escolas, dos estabelecimentos da pré-primária, dos agrupamentos escolares. Das Universidades. Deverá compreender-se que para uma sociedade mais democrática, para uma Democracia mais forte, que possa ter armas para combater a investida dos extremismos, à esquerda e à direita, é na escola – no ensino, na educação – que está a solução para problemas futuros.
É essencial, a meu ver, que à saída do 4.º ano do 1.º ciclo os alunos saibam ler e escrever e contar. Ler bem, aos nove, dez anos idade, significa, primeiro, que a criança gosta de ler. Porque gosta, lê. Lê em voz alta, desenvolveu um saber estar em público que lhe permite não gaguejar na hora em que lhe pedem que leia um poema, que entoe uma cantiga. No 1.º ciclo é imperioso que os professores relacionem o texto literário – sobretudo a poesia, porque contém a rima, que ajuda à memorização e tem imagens, que movem e comovem – com a música, e que nas aulas haja momentos em que as crianças, depois de ouvir o professor a ler bem (uma lenda, um conto, um mito), fiquem em silêncio. Ou desenhem.
Percebendo que a aula é o espaço onde se pode fecundar certa magia, a criança agitada, nervosa, triste, ansiosa, pode – com a ajuda do professor (um docente que sinta que trabalha com dignidade, que aufere um salário que o respeita e engrandece e lhe possibilita ter acesso à cultura) – aprender a contemplar. Mais do que fazer fichas de gramática, é o ditado, a cópia, a paráfrase – de textos previamente lidos, sedutoramente apresentados, mas sem circo, com sóbrio bom gosto e ternura – que levam à boa escrita. Nas férias, recordando como o professor e os colegas lêem bem, a criança quererá escrever algumas rimas, ou breves contos, ou pensar numa peça de teatro. À mesa, com a família, irá contar o que sabe sobre um mito, uma lenda, ouvi-la-emos cantar, fazer de conta. Não estará tão à mercê do tablet, das séries estupidificantes, não nos aparecerá com olhos mortiços, concentrar-se-á quando tem de estudar. Saberá articular as palavras, será sagaz nas matemáticas porque entende o que está escrito na língua dos seus pais, dos seus irmãos.
À saída do 2.º e 3.º ciclos, porque a disciplina de Português é transversal a todo o currículo, o pré-adolescente e o adolescente, sensibilizados para a poesia, podem começar a analisar a frase complexa, compreendendo por que razão é Camões o poeta do desconcerto. Olhando para um texto, saberão que o absurdo do real corresponde, quer pela convenção poética do classicismo, quer pela consciência da plasticidade do idioma, a uma sintaxe de hipérbatos, a uma estética da antítese, do oxímoro e do paradoxo. As orações subordinadas espelham o pensamento silogístico de Camões, de Antero, de Pessoa. Porque há história das mentalidades, o aluno gosta de ler os poetas do século XX – Pessanha no 9.º ano, por exemplo, surge-lhe como mestre da música feita poesia.