Francisco Cambournac e a malária: relembrar a história para construir o futuro
A organização da investigação científica portuguesa dedicada à malária tem uma história que merece ser contada com o mesmo rigor demonstrado pelos cientistas contemporâneos, subscritores do movimento “Zero Malária Começa Comigo”, porque dela podem ser tiradas importantes lições para o futuro.
O artigo de Miguel Prudêncio, no PÚBLICO do dia 25 de abril, suscita-me os seguintes comentários, na qualidade de antigo diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (entre 1983 e 1986, único lugar público que ocupei sem ter sido eleito pelos meus pares) e também como antigo reitor da Universidade Nova de Lisboa (entre 2007 e 2017):
1. A organização da investigação científica portuguesa dedicada à malária tem uma história que merece ser contada com o mesmo rigor demonstrado pelos cientistas contemporâneos, subscritores do movimento “Zero Malária Começa Comigo”, porque dela podem ser tiradas importantes lições para o futuro. Em primeiro lugar, importa esclarecer, corrigindo Prudêncio, que, em 1902, foi criada a Escola de Medicina Tropical e não a Escola Nacional de Saúde Pública. Esta última instituição teve o seu início em 1972 e ficou sob a dependência do então Ministério da Saúde e Assistência, enquanto o Instituto de Higiene e Medicina Tropical passou a pertencer ao então Ministério do Ultramar. Esta separação resultou do desfazer da Escola Nacional de Saúde Pública e Medicina Tropical (ENSPMT), criada em 1966, que nunca se conseguiu impor às vontades individuais e aos poderes corporativos que sempre minaram o interesse nacional na área da saúde pública.
2. Francisco Cambournac, com quem tive a honra de trabalhar intensamente entre 1983 e 1986, mantendo-nos sempre em contacto até ao seu falecimento, em 1994, foi o diretor da ENSPMT, desde a sua origem até à extinção. Fazia todo o sentido que tivesse ocupado esse lugar porque era um distinto professor de saúde pública e um “malariologista” com merecido reconhecimento internacional e com uma enorme experiência no terreno, em Portugal e no estrangeiro, por exemplo como fundador do então Instituto de Malariologia, em Águas de Moura, que agora tem o seu nome. Vinha também de uma missão notável, como organizador e diretor-fundador do Escritório da Organização Mundial da Saúde em África, lugar que ocupou entre 1955 e 1965.
3. Tratou-se de uma excelente escolha para a direção da ENSPMT, mas que não foi suficiente para fazer vingar uma iniciativa que tanto poderia ter dado a Portugal na área da saúde pública global, como agora se costuma dizer. Francisco Cambournac era um “Homem do Mundo Todo” e creio que a sua atenção esteve sempre voltada para o desenvolvimento global da saúde pública mais do que para as querelas individuais, falsamente rotuladas como “protetoras de áreas especializadas”, que só serviram, e servem, para fracionar e desintegrar instituições. Depois de 1972, Francisco Cambournac continuou o seu caminho ligado à malária e foi assim que ainda o acompanhei algumas vezes a Cabo Verde, no início da década de 80 do século passado, onde participava, ativamente, na prevenção do paludismo. Era um sábio capaz de abordar a medicina, a zoologia, a botânica ou a organização de serviços de saúde, com igual à vontade e competência.
4. A malária, e isso aprendi com ele, é um problema global que vai muito para além da biologia da doença e Portugal reúne todas em condições para, em colaboração estreita com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, estar na primeira linha, não só da investigação fundamental, mas também da aplicada e da inovação. Até tem, pela primeira vez na sua história, um médico angolano a dirigir o Instituto de Higiene e Medicina Tropical, que, ainda por cima, é um especialista em malária. Será que não conseguimos promover, em Portugal, instituições de saúde suficientemente fortes e abertas para se organizarem e, em conjunto, aceitarem este tipo de desafios? Neste caso não se trata de ressuscitar a ENSPMT, mas sim de criar uma rede que possa ter como lema “Zero Malária começa connosco”.
5. Por isso, quando leio, e concordo, com a necessidade de um maior financiamento da ciência baseado no sucesso internacional da produção científica, não posso deixar de afirmar que esse argumento já não é suficiente para tornar esse investimento como prioritário a nível nacional. Essa linguagem pertence a uma estratégia notável, desenvolvida por José Mariano Gago durante décadas, e agora prosseguida e diversificada por Manuel Heitor, por exemplo, através da investigação aeroespacial, para inserir a investigação científica na agenda política. Atualmente, devemos ser capazes de colocar a investigação científica portuguesa ao serviço, neste caso da saúde, através do desenvolvimento de projetos, científicos, clínicos e tecnológicos, que melhorem a qualidade de vida das populações. Este novo rumo tem de manter a qualidade da investigação fundamental, mas, sem a articulação com projetos de investigação clínica, de inovação biomédica e sem a ligação com empresas, arrisca-se a rodar sobre si próprio em espirais virtuosas, mas endogâmicas. Só rompendo esses círculos poderemos contribuir, verdadeiramente, para ganhar esta nova batalha que levará a um maior investimento na ciência atraindo e qualificando recursos humanos diversificados, para além dos cientistas. Se continuarmos a apostar exclusivamente na bandeira da produção científica de elevada qualidade, como é o caso da malária, passaremos de “becos” e “travessas” para “jardins suspensos”, mas a “penúria babilónica” continuará, mesmo se atingirmos o valor de 3% do PIB investido no financiamento da ciência.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico