Uma hipótese a norte para que Portugal saia mais forte da crise
Inspirados pelo “sentido da média virtude” de Agustina, onde cabem, entre outras rebeldias, “a paixão de contradizer e de violar a lei, de dar testemunho, opinião e parecer”, três nortenhos propõem saídas menos centralizadas para o pós-pandemia.
Passado um ano sobre o início da crise pandémica, temos de convir, os sinais são preocupantes. Porque, independentemente da capacidade assistencialista que temos evidenciado no apoio à economia (não obstante ele ser muito menor do que noutros parceiros europeus), são notoriamente insuficientes as iniciativas visando a definição de um conceito estratégico sólido e significativamente consensual.
Não conseguimos, de facto, levar a cabo um verdadeiro debate nacional que questionasse o que está errado, refletisse sobre os caminhos desejáveis e se saldasse por uma espécie de cérebro coletivo à escala nacional, formado numa interação de pensamentos diversos e plurais e capazes de se fazerem perceber uns aos outros; como nada indica que possa existir empenho político bastante para tal, de forma a incentivar uma imperiosa mudança.
Também não deixa de ser um facto que a sociedade não o exige alto e bom som. As chamadas “elites” vivem sob um significativo grau de isolamento e indiferença, o qual se repercute na restante população, que assim se vai vendo excluída dos grandes debates e tornando descrente quanto à potencial diferenciação decorrente das suas iniciativas individuais ou de grupo; resulta uma acomodação, preguiçosa e improcedente, à ideia de que caberá ao Estado enfrentar todos os problemas — uma ideia que é, aliás, contraditória com a crescente descrença nos governantes e na ação política.
O sentimento generalizado é, portanto, o de que um marcado conformismo vai conduzindo uma navegação que acontece ao sabor de uma lógica assente no business as usual. Para lá de insuportáveis bravatas sobre feitos e milagres nacionais de toda a ordem, o que subsiste é a inflexibilidade que impregna a administração pública, a modorra das organizações da sociedade civil e a tentação fácil de se procurarem iniciativas em grande e grandes obras (sem a devida avaliação do custo de oportunidade dessas escolhas, quase sempre de maturidade duvidosa e mal ou nada articuladas entre si).
(…)
Insistimos: não vimos tanto a terreiro com a expectativa de remar, decerto ingloriamente, contra as cartas marcadas de um destino empedernido — como disse Ângelo de Sousa, “passo a vida a esperar e depois nunca acontece nada, graças a Deus ou infelizmente” —, antes o vimos fazer com a firme e simultânea vontade de minimizar pela denúncia os arautos de “ideias brilhantes” que invariavelmente redundam em “mais do mesmo” e de afirmar, a partir do nosso ângulo muito próprio de visão, algo que possa ajudar a abrir outros espaços de respiração; um e pur si muove assente no quanto ainda se vai conseguindo viver com qualidade neste “lindo torrão lusitano” ou no quanto nos apraz ir observando que algo de novo se vai passando a Norte.
Sentimo-nos próximos, em vários destes níveis, de alguns dos que no presente espaço público vão deixando marcas de reflexão que vamos lendo como convergentes, em sentido mais estrito ou mais lato e na sua por vezes imensa distância circunstancial ou ideológica. De José Pacheco Pereira (“o liberalismo é igualmente importante para perceber como cidades ‘burguesas’ como o Porto estiveram sempre à frente dos combates pela liberdade”) a Clara Ferreira Alves (“desde o império que Portugal vive embasbacado com as injeções de capital”), de Miguel Sousa Tavares (“há uma outra franja de descontentes, que não o são com a democracia, mas com a forma como os destinos do país são conduzidos”) a Henrique Raposo (“o Norte está no ângulo morto de Lisboa”), de António Barreto (“o interior é um conceito, não uma realidade”) a João Miguel Tavares (“Portugal tornou-se um país viciado em fundos europeus”), de Manuel Carvalho (“acredita-se nesse velho princípio sábio da política, o da subsidiariedade, que nos diz que tudo o que se puder decidir no local não deve passar para a esfera nacional”) a João Vieira Pereira (“desafio alguém a tentar explicar qual é a ambição traduzida por estes documentos [PRR; Estratégia Portugal 2030]; que Portugal esperam que tenhamos no fim da chuva de milhões?”), para apenas mencionar alguns de entre inúmeros exemplos elucidativos possíveis.
Não obstante, assumimos, sem qualquer espécie de rebuço e muito orgulhosamente, toda a nossa filiação genética e cultural nessa “ingerência da média virtude que no Porto é uma espécie de estigma vermelho de todas as classes” e que Agustina tão brilhantemente identificou e caracterizou. Um “sentido da média virtude, onde cabe o vício discreto, a agressão judiciosa, a malignidade discursiva, a paixão de contradizer e de violar a lei, de dar testemunho, opinião, parecer, outras tantas achegas moralizantes ao arrepio da moral rígida e rotulada” e uma “alma coletiva da média virtude que vem pôr em ridículo a palavra excelente demais ou pôr em dúvida a força da lei ou o esplendor da promessa”.
Mas não é nossa convicção que essa nossa circunstância releve de qualquer laivo de superioridade comparada ou verdade absoluta; pelo contrário, vemo-la como convivendo o mais possível com o relativismo que o bom senso recomenda, ademais em períodos de “incerteza radical” como aquele que em que vivemos.
O livro inclui sete capítulos, os primeiros seis de natureza predominantemente analítica e tendentes a enquadrar a visão da economia e sociedade portuguesas que sustentamos como fundamento último para a proposta óbvia de que mudemos coletivamente de vida. Neles abordaremos o crescimento que não acontece, o “rentismo” em que nos viciamos, o endividamento que nos atingiu, as condicionantes macroeconómicas e microeconómicas que nos envolvem, as dimensões setoriais e territoriais em que operamos, as limitações institucionais e culturais que nos inibem.
Pelo meio, procuraremos dar nota do modo inovador como vem sendo recentemente percecionada a problemática do crescimento económico de um país, orientando-a para a apreensão teórica e empírica da complexidade dos sistemas económicos; do que retiraremos algumas implicações que julgamos essenciais para o caso português. O capítulo sete decorre de todos estes resultados, ponderados por uma intuição que de há muito vimos consciencializando: a de que haverá, porventura, uma hipótese a norte de se contribuir para que o país saia mais robusto da crise, talvez suscitando a oportunidade de transformações que já deveriam ter sido feitas, mas que agora se revelam inadiáveis.
Em suma: para um país diverso como é o nosso será excessivamente reducionista considerar-se que apenas existe um remédio que sirva a todas as suas regiões — a várias regiões, do ponto de vista da sua tradição e cultura e da sua base económica e industrial, terão de corresponder vias específicas e adequadas à realidade concreta em presença. Pelo que o que almejamos apresentar mais não pretende ser do que uma leitura inteligível e integradora numa perspetiva de complementaridade nacional em relação a distintos contributos e caminhos, sem prejuízo de um natural aprofundamento de propostas cuja aplicabilidade se dirige preferencialmente à nossa região, aquela onde vivemos e que melhor conhecemos.
Defendemos, pois, a razão de ser de uma estratégia de desenvolvimento industrial para o Norte (mais precisamente para o Noroeste industrializado e exportador) que, não sendo decidida na capital (ou por ela imposta), também não devesse excluir, antes saudar e reconhecer, o sentido de uma articulação com estratégias de outras procedências, nomeadamente da região de Lisboa — a outra grande macrorregião do país.
Deste modo, a zona mais litoral a norte teria de prosseguir com sustentação o seu processo de crescimento, recorrendo a medidas de reforço que apenas consumiriam uma fraca parcela da dotação total dos recursos que estão para chegar da Europa (a tal “bazuca”). Em paralelo, poderia prescindir-se de uma acentuação no quantum e nos modos de repartição desses fundos — isto é, de uma definição prévia da proporção de recursos que pudéssemos entender como devendo caber-nos — em favor de lógicas redistributivas e de complementaridade económica inteligentes que fossem direcionadas às zonas do interior e assim procurassem contribuir para efetivar um renovado sentido à fixação e vivência nesses territórios e ao seu estatuto de membros de parte inteira da comunidade nacional.
É nosso entendimento que não é mais tempo de alinhar em “jogos de soma nula”; mas é sabido que “são precisos dois para dançar o tango”. Não deveria mais pretender-se legitimar como nacionais estratégias do âmbito exclusivo dos interesses que gravitam em torno da “corte” e do seu modelo económico caduco, estratégias essas que perpetuam os maus vícios de “grandes projetos” sem retorno económico sustentado, cujos supostos ganhos estão longe de demonstrados e cujos efeitos negativos noutras regiões estão longe de acautelados e, por fim, que prolongam uma injusta manutenção de mecanismos rentistas prejudiciais às dinâmicas económicas de todos os territórios (sem exceção, embora com manifestações espacialmente diferenciadas) e do todo nacional.