Famílias de acolhimento em Portugal: a realidade, o sonho e a utopia

A família de acolhimento é, simplesmente, humana, com limitações inerentes e finalidades e funções finitas. Mas, é um crucial porto de abrigo que permite um renovado crescer e ponto de partida para todo um horizonte, até então de certa obscuridade, para a criança ou jovem acolhido, e um porto de paragem, um tempo alocado, para a reestruturação da família de origem.

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Filipa Fernandez

Compara-se a experiência do acolhimento familiar talvez a um acto de malabarismo. No ar, as várias bolas: a família de acolhimento, as famílias biológicas (aquela da criança ou jovem em acolhimento e aquela da família de acolhimento), o instituto de segurança social e entidades enquadradoras, os tribunais e a vastidão de técnicos e profissionais que acompanham (ou acompanharão) a criança ou jovem. Mas também outras, como o são as dimensões próprias de quem acolhe, incluindo o seu bem-estar, rotinas, emprego.

Tudo isto acompanha a “bola” que se deseja mais central —a criança ou jovem em acolhimento. Mas, num acto de malabarismo tudo circula e, num qualquer dado momento, apenas uma bola está nas nossas mãos. Um snapshot momentâneo apanhará todas as restantes, talvez no ar, talvez caídas, seguindo-se em frente e circulando-se entre aquilo que seguramos e o próximo que aí vem. A analogia não é necessariamente apropriada, falamos afinal de pessoas e sistemas em toda a sua dimensionalidade e complexidade tão maiores. No entanto, a própria finalidade do acolhimento é exactamente essa: o segurar e soltar (o objectivo primário do acolhimento familiar mantém-se o retorno da criança ou jovem ao seu meio natural de vida).

Raramente (se alguma vez) todas as partes se sentam juntas numa mesma sala, num mesmo momento, em diálogo verdadeiramente activo e construtivo, sempre com o superior interesse da criança ou jovem em mente. O acolhimento são momentos dispersos entre as diversas partes, num encaixar de informação e relatórios, digestão do sistema logístico, e prosseguir-se num cuidar que nem sempre é fácil. A família de acolhimento fica algures num epicentro do mecanismo de protecção e promoção de crianças e jovens em perigo, de interesses e perspectivas, mas paradoxalmente é periférica ao todo. É qualificada, mas não é, em si, o sistema escolar, de saúde ou jurídico (nem deve ser essa a expectativa, nem tal o impedimento a se promover o acolhimento familiar).

No contexto, quais as necessidades, entre o hoje e o amanhã, das famílias de acolhimento em Portugal?

  • Necessitam-se famílias de acolhimento em números, mas também visíveis e compreendidas. O mundo de quem acolhe alarga-se inesperadamente em e com cada acolhimento, mas encolhe-se num estar sozinho. Uma rede de apoio, formalizada, de famílias de acolhimento é essencial.
  • Necessita-se contínua e estabelecida capacitação das famílias de acolhimento, auscultando-se as famílias em si. O acolhimento familiar é uma experiência com base em dinâmica de partes/trabalho de grupo, diálogo, inteligência emocional, escuta atenta e activa, gestão de conflitos e stress, e capacidades relacionais e de alteridade. Workshops dinâmicos, reflexivos e acessíveis, são centrais em preparar, informar e maximizar a qualidade de cada acolhimento.
  • Necessita-se informação, práticas e procedimentos articulados e uniformizados. Não há ainda, por exemplo, um formulário daquilo que é necessário avaliar pelo médico(a) para elaboração da declaração médica necessária ao processo de qualificação para famílias de acolhimento. Há, noutros exemplos, famílias de acolhimento que encontram tremendas dificuldades numa simples renovação do cartão de cidadão da criança ou jovem em acolhimento. Sistemas informáticos, recursos humanos e procedimentos oficiais devem, ainda, acompanhar as provisões contempladas na nova lei de acolhimento familiar, nomeadamente as semelhantes aos direitos parentais, para que sejam devidamente solicitadas e usufruídas quando preciso.
  • Necessita-se uma definição concreta, assegurada e protegida de “licença parental” no início do acolhimento, que seja adequada, mas possível, para qualquer que seja a idade da criança ou jovem acolhido. Acolher a um domingo, para na segunda-feira a família de acolhimento ir trabalhar, a criança para o colégio ou escola (sem se sequer providenciar um dia para a inscrição!), sem claro direito a um período de aclimatização ou vinculação, numa altura tão sensível, crítica e de necessidades práticas imediatas, é particularmente difícil de compreender.
  • Necessita-se que as crianças e jovens acolhidos tenham um espaço aberto onde possam comunicar e partilhar as suas vivências, carências, desejos e sonhos, para que sejam forças catalisadoras, críticas e despertadoras da nossa realidade, com pleno conhecimento dos seus direitos.
  • Necessita-se a prática estar aliada à investigação no estabelecimento e efectivação de boas práticas.

A família de acolhimento é, simplesmente, humana, com limitações inerentes e finalidades e funções finitas. Mas, é um crucial porto de abrigo que permite um renovado crescer e ponto de partida para todo um horizonte, até então de certa obscuridade, para a criança ou jovem acolhido, e um porto de paragem, um tempo alocado, para a reestruturação da família de origem. Numa realidade portuguesa onde o sonho é inverter radicalmente a realidade do número de crianças e jovens necessitados de acolhimento familiar que para ele são efectivamente encaminhados (hoje, menos de três em cada 100), não pode ser utópico o capacitar e o cuidar de quem cuida. A utopia é termos um sistema perfeito. Trabalhe-se, porém, sempre construtivamente para assegurar um hoje e amanhã que se torne seguro para as nossas crianças e jovens em perigo, acolhendo-se em família cada vez mais e melhor, num constante aprender e evoluir de todas as partes.

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