Raquel Gaspar: “As mulheres são o motor da sociedade e da mudança”
A bióloga Raquel Gaspar, fundadora da organização não governamental Ocean Alive, dedica-se ao estudo e à conservação das pradarias marinhas, especialmente as do estuário do Sado. Em entrevista, fala sobre a criação do projecto Guardiãs do Mar, que junta investigadores e mulheres pescadoras. Estas mulheres “podem inspirar e mudar os outros”, acredita.
Raquel Gaspar é bióloga marinha e trabalha há muitos anos no estuário do Sado. Em 2015, a investigadora fundou a Ocean Alive (OA), uma organização de conservação da natureza cuja principal missão é a protecção das pradarias marinhas do estuário do Sado, um habitat-chave para a vida marinha nesta região. É também a primeira cooperativa em Portugal dedicada à protecção do oceano. Raquel Gaspar e os restantes biólogos envolvidos na OA iniciaram um projecto original de monitorização deste ecossistema, recorrendo ao serviço das pescadoras e mariscadoras do estuário. O projecto foi baptizado “Guardiãs do Mar”.
Como surgiu a Ocean Alive?
Durante 20 anos estudei os golfinhos-roazes (Turciops truncatus) do estuário do Sado e enquanto investigadora, na altura, procurava compreender como poderíamos salvar estes animais e evitar que a população não continuasse em declínio. Durante esse tempo, analisei a evolução dos dados demográficos. Cheguei à conclusão que os golfinhos só poderiam expressar as melhores taxas de sobrevivência e fecundidade se melhorássemos as condições naturais do habitat. De repente, compreendi que a minha vida tinha de dar uma volta e concentrar-se na protecção do habitat do qual eles dependem. Foi assim que conheci as pradarias marinhas. Despedi-me do emprego que tinha na Reserva Natural do Estuário do Sado e resolvi criar um projecto de conservação das pradarias marinhas.
O projecto Guardiãs do Mar envolve a comunidade piscatória, nomeadamente as mulheres pescadoras, na protecção das pradarias e do estuário. Como nasceu esta ideia?
O projecto só nasceu com uma aliança com as mulheres pescadoras. Decidi falar com elas, porque sabia que tínhamos o mesmo interesse. Quase 100% da pesca no estuário depende directa ou indirectamente das pradarias marinhas. Falei primeiro com três pescadoras e nessa altura o projecto ainda estava muito incipiente. Foi só em 2016 que concorremos ao Prémio de Ideias de Origem Portuguesa, da Fundação Calouste Gulbenkian, e foi aí que o projecto se cimentou. Percebemos que, como organização, o nosso objectivo era eliminar as ameaças e as práticas que provocavam a degradação das pradarias. E queríamos combater esses problemas através das pescadoras. Havia algum desemprego na comunidade piscatória, muito por culpa do desaparecimento dos recursos pesqueiros derivado da degradação do habitat. Queríamos dar resposta a esse desemprego, valorizando o conhecimento das pescadoras. Nesse sentido, criámos novas profissões: as educadoras marinhas, focadas na divulgação e sensibilização ambiental, e as monitoras marinhas, responsáveis por recolher informação sobre o estado das pradarias.
Foi criado um grupo feminino de propósito ou foi simplesmente uma coincidência o facto de haver mais mulheres envolvidas nas actividades piscatórias no estuário?
Foi de propósito. Eu acredito imenso nas mulheres. Uma mãe é o maior símbolo da sustentabilidade: tu lutas para que aquilo que tu crias possa ter um futuro. De facto, sustentabilidade para mim é isto: poder ensinar o que tens de melhor aos outros para que eles mesmo possam ser prósperos. Eu acredito que as mulheres são o motor da sociedade e da mudança. As mulheres podem inspirar e mudar os outros.
Através de que acções a OA desenvolve a sua vertente de educação e sensibilização ambiental?
Nós temos um programa de educação marinha com três componentes. Uma da vertentes é a candidatura a projectos para comunicar conceitos-chave. Envolvemos escolas, capacitamos professores especificamente para o tema das pradarias marinhas. Outra forma é através do interesse de outras entidades, que nos compram serviços educativos. A terceira é a Summer School, feita para jovens do ensino secundário ou superior. O nosso eixo de actuação não é tanto a transmissão de conceitos, mas sim a mudança de comportamentos. Há três problemas a ser combatidos no estuário através da alteração de hábitos: o lixo da mariscagem, centrado no problema das embalagens de sal, as âncoras e as amarrações dos barcos que destroem as pradarias e a pesca destrutiva.
Em tempo de pandemia, como foi a adaptação da OA?
A pandemia foi terrível para a OA. Tínhamos inúmeros projectos a decorrer, nomeadamente acções educativas com os alunos, que tiveram de ser interrompidas. Em termos de organização, foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Horrível, porque fomos mesmo ao fundo a nível financeiro. Nós não temos subsídios, como muitas pessoas pensam. Vendemos serviços e actividades educativas, candidatamo-nos a financiamentos e ganhamos prémios. Foi assim que fomos financiando o projecto. Todo o nosso modelo de negócio foi por água abaixo. Foi um balde de água fria, mas foi maravilhoso, porque nos obrigou a reinventar. Pensem na adaptação das espécies, quando há adversidades ambientais: é análogo.
É o conhecido princípio da “perturbação intermédia” [em Ecologia, este princípio defende que, para que um ecossistema possa ser mais resiliente e diverso, é necessário um grau moderado de perturbações ambientais].
Sim, somos obrigados a adaptar-nos. Descobri que tinha uma folha em branco à minha frente. Tínhamos um caminho até aqui que estava a dar resultado sem esforço de divulgação. Mas agora tínhamos de inventar uma coisa do zero. E na página em branco eu vi aquilo que mais queria: reflorestar o mar. A pandemia deu-nos hipótese de agarrarmos na OA e recriarmos as nossas fontes de receitas na direcção do restauro das pradarias. No caso das pradarias, a estratégia de maior sucesso é a eliminação das ameaças, exactamente aquilo que fazíamos no passado. Portanto decidimos mudar o conteúdo da mensagem no sentido da reflorestação das pradarias.
E essa mensagem acaba por ser mais facilmente compreendida pelo público. As pradarias estão fora da percepção visual das pessoas e não há uma associação rápida à ideia básica de reflorestação. A partir do momento em que utilizam a palavra “reflorestação”, a mensagem torna-se mais apelativa.
Sim, é verdade, e no momento em que gritámos cá para fora esta ideia, o interesse na organização voltou. Conseguimos, assim sem mais nem menos, interesses privados para nos ajudar com esta missão.
Quais são os ensinamentos mais importantes do último ano?
O primeiro ensinamento é que há excepções. Nós somos uma associação que trabalha em proximidade com as pessoas, graças à nossa rede de voluntários e às guardiãs do mar. Houve um ano, numa festa dos pescadores, em que descobrimos sete embalagens de sal e foi muito frustrante. Na altura, a Dina, uma das guardiãs, disse-me: “Raquel, tu tens de entender uma coisa: vai haver sempre excepções.” A nossa missão é mudar comportamentos e, portanto, queremos ver resultados. Mas a verdade é que vai sempre haver excepções.
Outro ensinamento surge quando me interrogo: de que lado quero estar em relação ao inimigo? E uma das coisas mais importantes para mim é hoje poder estar sentada ao lado do inimigo. Isto torna-se especialmente importante no contexto das dragagens do estuário do Sado. Quando nos foi dada a oportunidade de nos reunirmos com a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), de repente senti um poder enorme. Estar sentada ao lado da administração é completamente diferente de estar do outro lado a apontar-lhe o dedo. Esta foi a maior das lições: a importância do nosso posicionamento.
Reunir consensos faz parte do trabalho de conservação. É importante garantir uma base de estabilidade para a protecção e manutenção destes habitats não só para nós, mas também para as gerações seguintes. Esta é uma noção que escapa aos decisores políticos?
Sim, de certa forma, mas um feito fantástico que alcançámos foi pôr os políticos a falar de pradarias marinhas. Os programas políticos do PS e do Bloco de Esquerda sobre clima também já incluem menções a este habitat. Conseguimos que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) se reunisse com os investigadores que estudam o carbono azul (o carbono sequestrado e armazenado em habitats marinhos, entre os quais as pradarias e os sapais) e chamámos-lhes a atenção para um facto que eles não sabiam: uma floresta marinha consegue captar 30 vezes mais carbono do que uma floresta terrestre. Conseguimos, nesse momento, que Portugal, através da APA, aceitasse as pradarias e os sapais como sumidouros naturais de carbono, passando a integrar a lista de emissores/sumidouros de dióxido de carbono.
E o reconhecimento é o primeiro passo para passar à acção.
Sim, e ver o caminho que fizemos até hoje é a prova de que é possível partir da base para chegar ao topo do poder político, exercendo uma influência importante na mudança de perspectivas ao nível da governação.
Pensam em replicar o projecto da OA noutras áreas húmidas costeiras de Portugal?
O nosso objectivo é mesmo inspirar outras ONG locais. Não queremos que a OA vá para lá tomar conta – queremos dar a alavanca necessária a outras associações. Acreditamos que o oceano pode ser gerido e protegido pelas comunidades locais. Transmitiremos sempre o savoir-faire, mas o fim último é deixar as comunidades tomar conta.
É como diz o ditado: não pesques o peixe, ensina a pescar.
É isso mesmo, é essa a mensagem que queremos comunicar.
António Vaz Pato é estudante do terceiro ano de licenciatura em Biologia.