E se a III Guerra Mundial começar para a semana?
Se Putin avançar sobre a Ucrânia e a China avançar sobre a Formosa, o que farão os EUA e a Nato? Para a Administração Biden, empenhada em retomar o papel de liderança dos EUA no mundo e tendo posições claras quanto a estas duas questões, a situação é de grande perigo.
Não, não é especulação jornalística. Afastar esta hipótese como ridícula seria ignorar o reflexo mais importante dos líderes políticos desde antes da Idade da Pedra: ganhar influência sobre os vizinhos e parceiros e, sempre que necessário, usar a força. Não haja dúvidas de que a guerra foi, ao longo dos tempos, a actividade central dos povos.
Poderia pensar-se que sociedades civilizadas e ricas veriam na violência das guerras algo anacrónico e irracional, quiçá relíquias do bárbaro passado. Realmente, destruir a riqueza e o bem essencial que é a vida são contradições absolutas com o esforço aplicado no desenvolvimento e no progresso. Mas basta ver o que nos diz a História, mesmo a dos últimos 100 anos. Em 1914, as potências europeias – que tinham alcançado um nível de sofisticação e de poder planetário nunca antes atingido – viviam num ambiente de paz e de progresso que todos julgavam totalmente adquirido. No entanto, bastaram algumas semanas de acontecimentos escorregadios para que em Julho fosse declarada a I Guerra Mundial que levou à autodestruição da Europa e à emergência de uma nova potência, os Estados Unidos da América. Nenhum líder europeu julgava possível, durante o 1.º semestre de 1914, uma situação de guerra mas, por via de um complexo conjunto de razões bem conhecidas dos historiadores, foi o que veio a acontecer.
A génese da II Guerra Mundial é, contudo, bem diferente. Nela houve, por parte dos líderes alemães e japoneses, uma vontade assumida de fazer a guerra para conquistar território e influência. A Europa democrática não teve capacidade para se opor, nem sequer para resistir. A força guerreira impôs-se e só a intervenção salvadora dos EUA mudou o resultado. No fim da guerra em 1945, a Europa, relegada para a segunda divisão na escala global, aprendeu a lição e lançou-se na unificação europeia, o maior projecto de paz da Humanidade. Mas a perspectiva de uma guerra mundial manteve-se sempre presente – mesmo com a designação de fria – entre as grandes potências. E o facto de tal nunca se ter concretizado deveu-se ao sentido de responsabilidade demonstrado pelos seus dirigentes.
Hoje o mundo está diferente. A União Soviética desapareceu e a sua herdeira, a Rússia, não pesa economicamente, apesar de manter os milhares de ogivas nucleares que faziam a glória da sua antepassada. A Rússia é um anão económico, sentado em cima de montanhas de dinamite. A China, adormecida nos últimos dois séculos, tornou-se de novo na potência económica que fabrica o que o mundo consome. Segura dessa força, decidiu perder a contenção de um comportamento recatado e passar a exigir ser tratada com senhoria. Ora, é nesta fase de transição e reajuste de forças em que nos encontramos que surgem os perigos inerentes aos períodos de grandes mudanças.
Para nosso descanso, os analistas são unânimes em afirmar que o interesse da China é hoje preservar a riqueza e o poder adquirido, pelo que aventuras guerreiras são de todo impensáveis, a menos que os riscos de insucesso sejam negligenciáveis o que, dada a posição dos EUA, parece estar fora de causa. A paz é com certeza o cenário central, mas o mundo é uma realidade dinâmica que tem de ser acompanhada e onde o jogo de forças se desenvolve em permanência na sua plenitude. Os contendores são agora os EUA e a China, com a Rússia relegada para o papel de um espectador interessado. A forma como os interesses de cada um é satisfeita determinará o futuro do mundo e a China tem um caderno de reivindicações em cima da mesa onde consta em grande destaque a reintegração da Formosa e o controlo das rotas marítimas para o comércio dos seus produtos.
A Formosa é, aliás, uma questão central para o ajuste contas com o seu passado de império milenar e para a recuperação da humilhação infligida entre meados dos séc. XIX e XX. Com a resolução do dramático episódio da Guerra do Ópio, após a devolução pela Grã-Bretanha de Hong Kong, falta integrar a Formosa, ocupada pelo Japão em 1895 e, desde o fim da II Guerra Mundial, refúgio do Governo não comunista da República da China. Também as rotas marítimas são absolutamente críticas para o funcionamento do comércio. Estas não são, no entender da China, pretensões de conquista territorial, mas a verdade é que a sua concretização choca com interesses instalados.
Para complicar o caminho, a administração Trump, respondendo ao desafio de supremacia lançado pela China, entrou numa agressão caótica e descoordenada, que teve como resultado inesperado a aproximação da China à Rússia. Apesar destes grandes países serem adversários naturais pela sua longa fronteira terrestre, a religião marxista-leninista tornou-os temporariamente aliados, mas o cisma maoísta dos anos 60 levou-os de volta à posição natural de adversários. Agora, depois de mais de meio século em que China e Rússia se ignoraram, e com Putin no leme à procura de oportunidades para se vingar do Ocidente pelo que este fez à sua União Soviética, uma sintonia de interesses foi ficando patente.
E aqui entra de facto o fantasma da guerra. Pelo que se sabe, estão neste momento concentrados cerca de 200 mil soldados russos junto à fronteira da Ucrânia e, ao mesmo tempo, um arsenal de meios militares chineses acumula-se no estreito da Formosa. Para a Administração Biden, empenhada em retomar o papel de liderança dos EUA no mundo e tendo posições claras quanto a estas duas questões, a situação é de grande perigo. Se Putin avançar sobre a Ucrânia e a China avançar sobre a Formosa, o que farão os EUA e a Nato?
Mesmo acreditando que a China não quer a guerra e o que pretende é apenas a humilhação dos EUA, recorda-se que, em Junho de 1914, todos na Europa juravam pela Paz.