Sofia Arruda, a culpabilização das mulheres e o manual para vítimas perfeitas

Sofia Arruda não nos deve a identificação de quem a assediou — não nos deve nada. Só as vítimas sabem do seu tempo, processo e segurança. As vítimas não nos devem nem o silêncio, nem a partilha, nem a denúncia calendarizada nos nossos termos. Devemo-lhes, nós todas/os, tanto: ouvir.

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“Ela devia dizer o nome”, “ela que diga em público quem é o predador”, “Arruda está a ser egoísta, afinal essa pessoa quem é?”.

Estes são apenas alguns exemplos dos comentários à recente entrevista televisiva onde Sofia Arruda relatou o assédio sexual de que foi alvo “por parte de uma pessoa com muito poder dentro de uma estação de televisão”. No programa Alta Definição, a actriz contou como a aproximação foi inicialmente “velada, muito insinuante”: “Uma mão, um cumprimento que ficava no sítio que não era suposto, um beijo que me deixava um pouco constrangida, mas às tantas tu pensas que se calhar a pessoa é assim, muito afectuosa, e ficas a sorrir timidamente e afastas-te.” A situação de assédio foi escalando, relatou a actriz, passando “para intervenções mais directas”, até culminar com retaliações profissionais por não ter correspondido à “atenção que não era profissional” por parte de um homem que não identifica. Sofia Arruda recordou como a situação terminou: “Respondeu-me que então nunca mais ia trabalhar ali.” O que viria a confirmar-se — a actriz ficou vários anos sem trabalhar na mesma estação televisiva.

Em Portugal, ainda mergulhado num silêncio-ficção de que a violência sexual é inexistente (ou, porventura, rara), mais uma mulher com visibilidade mediática quebrou o silêncio sobre a sua experiência de assédio sexual. As reacções somam-se (mais uma vez) entre a solidariedade e o apoio, o escárnio, a descrença e a clássica culpabilização das vítimas. Exige-se a identificação do assediador, como se Sofia Arruda — ou qualquer outra mulher — tivesse um dever de denúncia, límpido e jornalístico, imediato e comprovável, ao abrigo de um qualquer manual para vítimas credíveis. Afinal, exigem-se nomes, dizem, porque sem nomes o testemunho de Sofia Arruda de nada vale nem previne — como se às mulheres coubesse o ónus de garantir a protecção de si mesmas e de todas as outras.

A tão antiga culpabilização das mulheres pelos crimes contra elas cometidos: as mulheres são consideradas culpadas porque não evitaram o assédio, ou porque não o denunciaram mais cedo, ou ainda porque não denunciaram na (suposta) medida certa. A palavra da mulher nunca nos basta: tivesse Sofia Arruda nomeado quem a assediou e seria acusada de procurar vantagem ou vingança, apelidada de vingativa e calculista. Pelo contrário, tendo partilhado a sua experiência sem apontar culpados, queixamo-nos de que não chega: queremos saber quem foi.

O constante escrutínio sobre as vítimas, a sua palavra, comportamento e actuação — antes, perante e depois da violência sexual: “Porque não falou antes? Porque não denunciou? Como reagiu? De que forma se pôs a jeito?” A mesma culpabilização insidiosa que fomenta a autoculpabilização das vítimas, expressa nas palavras de Sofia Arruda: “Sei que fui vítima, mas sentia-me culpada porque pensava se em algum momento tinha dado a entender alguma coisa. Mas tinha a certeza de que não tinha dado, que nunca tinha permitido qualquer tipo de aproximação que não fosse profissional dentro do local de trabalho.”

Exigem-se nomes, também, porque assim é mais fácil: individualizando o problema do assédio sexual, restringindo-o a rostos, situações e protagonistas concretos. Porque a identificação dos agressores permite circunscrever o problema a personalidades concretas e considerá-las desviantes e desprezíveis, mantendo a ilusão de que a norma é saudável e impoluta. Exigir nomes isenta-nos de desmontar as razões do silêncio das vítimas e as nossas próprias cumplicidades. Dispensa-nos do confronto com o nosso próprio silencio: afinal, há certamente muita gente a saber — muita gente que sabia e preferiu não agir, não falar. Muitos saberão, deste caso e de outros. Nas palavras da também actriz Sara Barros Leitão, no Facebook: “Toda a gente no nosso meio sabe quem é. De colegas a equipas, de canais a comunicação social.”

Sofia Arruda não nos deve a identificação de quem a assediou — não nos deve nada. Só as vítimas sabem do seu tempo, processo e segurança. As vítimas não nos devem nem o silêncio, nem a partilha, nem a denúncia calendarizada nos nossos termos. Devemo-lhes, nós todas/os, tanto: ouvir. Acreditar, por princípio. Perceber e respeitar o seu tempo e o silêncio: porque denunciar implica quase sempre um preço demasiado alto. Quando perguntamos “porque não falou mais cedo?”, não esqueçamos —​ é (também) por isto: porque não as ouvimos.

Em Portugal, o país sem MeToo (movimento que ecoou em diversos contextos para lá do epicentro estado-unidense), o relato corajoso de Sofia Arruda reacendeu a discussão sobre o assédio sexual, a sua invisibilização e a tremenda dificuldade da prova, aliada à desconfiança sistémica sobre a palavra das mulheres. Suscitou também a partilha de outras histórias por tantas outras mulheres, nas redes sociais. Lembrou como a cultura de impunidade é transversal a todos os meios, classes e contextos profissionais.

Em Portugal, no país (ainda) sem #MeToo, voltámos a falar sobre assédio sexual. Obrigada, Sofia Arruda: sempre que uma mulher fala, há outra que sabe que não está sozinha. Seremos cada vez mais. Muitas mulheres estarão prontas para falar — estaremos prontas/os para ouvir de forma empática?

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