Passava das duas da manhã quando levou a chave à porta. Cada volta entoava como um trovão no patamar gelado e escuro. Sorrateiro na sua própria casa, velava ao longe o sono das mais novas. Na manhã seguinte, acordaria exactamente igual, antes de todos, antes dos salpicos das laranjas espremidas, da correria contra as horas, antes de um beijo de despedida. Vivia sempre morto.
Um dia, Pedro fez exames. Doía-lhe a cabeça e sentia-se tonto, mas demorou a encontrar uma vaga na agenda para ir ao médico. Entre duas reuniões, a notícia chegou e o pior confirmou-se. A vida correu-lhe entre os dedos como areia fina. O que era tão vital e inadiável caiu na mediocridade. Terá valido a pena o aumento do último ano? O que levou com ele? Que sonhos deixou?
Não muito longe, um rebanho de ovelhas sobe devagar a serra, desalinhadas mas cientes do caminho. Na ponta, o seu pastor, de face vincada pelo sol e cortada pelas madrugadas, exibe um sorriso de quem já respirou fundo hoje, perdeu o olhar no infinito azul e deixou o vagar tomar conta de si. No bolso não tem mais do que meia dúzia de moedas, um telemóvel de teclas e bocados de pão para dar aos melros. Uma paz que não se compra e a certeza que cumpre o seu lugar na natureza, sem a beliscar, sem dela se apoderar.
Duas histórias que não se cruzam, mas que nos tocam. Onde morou a felicidade? Quem a soube viver? Ambos ou talvez nenhum, depende da perspectiva e para que lado da balança pesa o teu coração. Certo é que ser feliz dá muito trabalho, é um emprego a tempo inteiro, um investimento duro que por vezes nos afasta de alguns lugares mas nos recentra no que é genuinamente importante. Pode estar no que fazes ou simplesmente no que és. Pode estar no mais ou no menos. Certo é que a felicidade deveria ser um compromisso, um acordo que fazemos connosco próprios, a premissa de todas as escolhas. Certo é, que muitas vezes somos cobardes e receamos a imensidão, preferimos seguir pelo caminho que nos apontam como seguro, mesmo que seja um túnel com ar rarefeito de luz ténue que nos magoa os olhos e vai até as têmporas. Certo é que não tenho dúvidas.
Mas se ponderarmos de uma forma séria e lúcida, se soubermos ouvir as lições básicas e gratuitas que a vida nos oferece, de que vale um carro mais veloz ou uma casa maior se não tens um minuto para ouvir a tua música favorita, fazer aquela receita ou sentir o cheiro dos cabelos dos teus filhos, com se fosse o mais caro dos perfumes? De que valem férias paradisíacas se estás cansado mesmo quando descansas? O que vale?
Por cada vez que não tiveste tempo para ouvir o lamento do teu vizinho, foste pobre. Todas as vezes que não percebeste a solidão de um amigo, foste triste. Porque nem sempre a formiga é a mais rica da fábula e a cigarra canta de contente, nem sempre a moral da história está certa, mas depende sempre de nós viver um final feliz.