O regresso do grande actor

A entrevista de José Sócrates à TVI fez-me recordar o poder dos olhos mais esbugalhados da política portuguesa. O animal feroz está de volta aos palcos. E em grande forma.

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Reuters/PEDRO NUNES

A primeira vez que tive a certeza que José Sócrates era um extraordinário actor foi num congresso do PS, na antiga FIL, nos idos de 2007. Andava a investigar o seu curso na Universidade Independente, para o PÚBLICO, e fui lá para lhe fazer algumas perguntas. 

Então primeiro-ministro, Sócrates veio ter comigo, como tinha sido combinado com o seu assessor de imprensa. Na altura, ele já sabia que me tinham surgido dúvidas sobre a sua licenciatura em Engenharia, depois de consultar o dossier de aluno. 

A reacção foi muito parecida à que ontem assisti na entrevista de José Alberto Carvalho, na TVI. Sócrates pôs-se no seu papel de vítima política, de indignado condoído, soltando por fim o animal feroz. Falava com os olhos esbugalhados, os gestos amplos. Para um leigo em Sócrates, estava ali alguém ferido, injustamente ferido.

Foi sempre assim. Primeiro, a vitimização. Depois, perante a insistência nos factos do interlocutor, a encenação da fúria, o sobrolho carregado, o “eh pá”, a coloquialidade como simulação do homem autêntico. 

Houve outros episódios assim, nesse período. Certa vez, antes da investigação à licenciatura ser publicada, o então primeiro-ministro ligou-me por volta da meia-noite, para o meu telemóvel pessoal. A intenção era dar explicações, esclarecer tudo. “O que é que quer saber?”, atirou, magnânimo, já madrugada dentro. 

Mas assim que comecei a fazer-lhe perguntas concretas sobre exames, documentos forjados, etc., acabou a bondade. “Você é do bas-fond”, lembro-me de o ouvir vociferar, já em registo fulminante e intimidatório.

O comportamento tornar-se-ia público e notório nos anos seguintes. E também por isso o que se passou esta quarta-feira, na entrevista que o ex-primeiro-ministro deu à TVI, não devia ser novidade. Nem para os espectadores, nem para José Alberto Carvalho. 

José Alberto Carvalho, juntamente com Maria Flor Pedroso, esteve na entrevista usada por Sócrates para se reabilitar da crise provocada pelo curso da Independente. Quando Sócrates estava em apuros com a sua primeira crise de idoneidade, escolheu o horário nobre da RTP para a performance. E foi absolutamente perfeito. 

Sócrates estivera 19 dias em silêncio a preparar a narrativa da cabala político-jornalística. Encenou tudo. Antecipou todas as perguntas. Simulou com os seus assessores de imprensa. Sacou de todos os trunfos da dramatização. Meteu a melhor gravata. Por fim, em directo, acabou por atropelar a dupla de experientes jornalistas. E deixar o país convencido.

Lembro-me de, nessa noite, estar na redacção e pensar: “Extraordinário. Este homem é diabólico.” Até eu, que tinha os documentos à frente, que tinha testemunhos dos colegas e de professores a corroborar essa licenciatura traficada, por instantes, coloquei tudo em causa. 

A entrevista à TVI desta semana recordou-me essa prestação, sendo que desta feita José Alberto Carvalho, agora a solo, mostrou-se ainda mais impotente do que há 14 anos para gerir a truculência controlada do animal feroz. Sócrates, um homem que conhece a fundo o processo e a lei penal — e que esteve anos a preparar o seu regresso televisivo —, sobrepôs-se às perguntas incómodas, intimidou, manipulou, agarrou-se ao acessório para evitar o essencial.

Voltando aos idos de 2007. Nessa altura, o primeiro-ministro saiu do estúdio da estação pública com a imagem renovada, aos olhos do público e da justiça. O Ministério Público haveria de meter todas as dúvidas na gaveta (nem foi preciso juiz de instrução) e o grande mitómano sobreviveria.

Hoje, temos mais informação sobre o seu currículo e a sua personalidade. Mas convém estar alerta para o seguinte. Sócrates vai querer ir muitas vezes à televisão. E vai ter muitos anos para o fazer até que haja uma decisão final da justiça. Convirá que os jornalistas estejam conscientes do seu talento, da força da sua representação. 

O mais sofisticado actor da política democrática portuguesa está de volta. Saibamos interpretar a peça. 

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