Pode a freguesia de Belém passar ao largo do problema do acesso à habitação?
Belém tem, atualmente, e relativamente à média da cidade de Lisboa, uma habitação mais cara e com um custo a aumentar mais rapidamente. Assim, a acompanhar o problema demográfico, a freguesia tem também um problema de acesso à habitação por resolver.
O projeto de desenvolvimento habitacional do Alto do Restelo – PRA Restelo –, apresentado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) no âmbito do Programa Renda Acessível (PRA), tem características dificilmente aceitáveis no quadro de uma perspetiva de desenvolvimento urbano sustentável e harmonioso daquela zona da freguesia de Belém.
De entre as falhas do projeto, podemos destacar quatro. O projeto falha, desde logo, pela ausência de um alargado debate público que, no início da publicitação da operação, se preparava para prosseguir, fundamentalmente, na plataforma eletrónica da CML.
O projeto falha, também, ao apresentar uma solução fora de uma abordagem global e integrada de desenvolvimento urbano, de toda a zona do Alto do Restelo. O projeto falha, ainda, na carga construtiva que propõe, apresentando volumetrias que rompem com a escala urbana da sua envolvente. O projeto falha, por último, na desmesurada área a afetar a uso comercial, cuja concretização levará à insustentabilidade do pequeno comércio, processo que se agravará com a eventual instalação de uma grande superfície.
A proposta do PRA Restelo recolhe, efetivamente, uma generalizada recusa por parte da população e de todas as sensibilidades políticas da freguesia (onde diversos fundamentos de oposição à operação têm o seu espaço).
Mas, se a atual proposta do PRA Restelo não tem condições locais para prosseguir, pode a freguesia de Belém passar ao largo do problema do acesso à habitação a custos acessíveis?
Os últimos três Censos da população (1991, 2001 e 2011) evidenciam uma trajetória demográfica acentuadamente negativa na freguesia de Belém. Nos 20 anos cobertos por aqueles Censos, a freguesia perdeu 20% da sua população (4200 habitantes), apresentando uma regressão demográfica superior à verificada na cidade de Lisboa (onde a perda de população se situou nos 17%). Esta quebra demográfica na freguesia foi particularmente violenta nas suas zonas históricas, onde a redução da população atingiu os 30%. Com as Estimativas da População para 2019 chegamos a uma perda de população em Belém, nos últimos 30 anos, de cerca de 25% da população.
Se muito se lamenta a perda de população que a cidade de Lisboa tem verificado nas últimas décadas, mais terá, assim, de se lamentar a brutal redução demográfica que a freguesia tem registado. Isto é, a freguesia de Belém, tal como a cidade de Lisboa, tem um problema demográfico grave para resolver.
Os resultados dos Censos de 2021 permitirão perceber, com rigor, as várias dimensões do processo de perda e recomposição demográfica da freguesia, nomeadamente, quais os segmentos sociais mais afetados por esta evolução demográfica.
Mas as estatísticas do preço da habitação na freguesia permitem que façamos algumas apreciações sobre esta matéria. E isto porque um dos fatores que tem estado na base de fenómenos de reestruturação social da cidade de Lisboa é, inquestionavelmente, o preço da habitação, cuja escalada especulativa tem tornado o direito à habitação um pesadelo para a maioria da população, nomeadamente, para os jovens e trabalhadores de rendimentos intermédios.
E, de facto, a evolução do preço da habitação em Belém aponta, justamente, neste sentido: nos últimos quatro anos a variação do valor de venda do metro quadrado dos alojamentos familiares, em Belém, subiu dos 2083€ para o 3577€, isto é, um acréscimo de 72%. Trata-se de um crescimento do custo da habitação com um ritmo superior ao verificado no conjunto da cidade, levando o preço da habitação para níveis mais elevados e crescentemente mais afastados face aos preços da habitação em Lisboa. Isto é, Belém tem, atualmente, e relativamente à média da cidade, uma habitação mais cara e com um custo a aumentar mais rapidamente.
Assim, a acompanhar o problema demográfico, Belém tem também um problema de acesso à habitação por resolver. A questão nuclear que interessa aqui sublinhar é a relação entre estes dois processos: Belém perde população porque a habitação se tem tornado cada vez mais inacessível à maioria das famílias. Dito de outra forma, é a valorização da propriedade imobiliária que tem conduzido à expulsão da população pela inexistência de habitação a custos acessíveis. Não têm alternativa: como não podem pagar, são forçados a sair, são expulsos da cidade. E, por esta via, são, simultaneamente, expropriados do direito à habitação e do direito ao lugar.
Os fluxos da população na freguesia não têm sido apenas fluxos de saída. Outras famílias têm entrado. São as famílias que podem pagar, aquelas que trazem consigo o poder do dinheiro e que transformam a paisagem social e urbana da freguesia. As mais recentes torres do Restelo (de que o Sky Restelo é o exemplo mais distintivo), os novos condomínios de luxo da Rua de Pedrouços e as luxuosamente reabilitadas vivendas do Bairro do Restelo acolhem uma nova sociologia de residentes que se distingue pelo elevado poder de compra refletido, designadamente, no valor das casas. Com este afluxo de famílias abastadas a freguesia vai reforçando, silenciosamente, o seu estatuto de lugar certo para a residência de uma camada de elites profissionais ligada à nova economia da cidade de Lisboa, uma economia crescentemente terciarizada, crescentemente inserida nos circuitos económicos internacionais, crescentemente dominada por funções de controlo e de poder nos domínios económico e empresarial.
Para estas novas camadas sociais a habitação é, antes de mais, um verdadeiro ativo financeiro, cuja aquisição e posse são determinados por uma perspetiva financeira cujas condições de crescente valorização terão de ser asseguradas. E, também deste ponto de vista, a freguesia de Belém tem-se revelado como um lugar certo para proprietários e investidores.
Que o preço social a pagar pelo sucesso da valorização dos ativos imobiliários seja a negação do direito à habitação, ao lugar e à cidade para a maioria das famílias, é um preço que famílias proprietárias mais abastadas estarão dispostas a assumir e interessadas em fomentar.
É neste ponto que a política de cidade se confronta com os interesses divergentes de classes sociais: que cidade queremos construir e para quem queremos construir a cidade? Uma cidade cujas opções de desenvolvimento são guiadas, fundamentalmente, pelo valor da propriedade imobiliária e pela capacidade de comprar e pagar; uma cidade de proprietários-investidores? Ou uma cidade onde o direito (humano e constitucional) à habitação é um direito universal e nuclear do direito à cidade, concretizado no quadro de uma perspetiva de desenvolvimento urbano sustentável?
Regressemos, então, à proposta da operação PRA-Restelo, que reúne um alargado consenso na sua contestação. É necessária a sua revisão estrutural.
Contudo, qualquer proposta alternativa que exclua uma forte componente de habitação a custos acessíveis é uma proposta inaceitável por não dar resposta ao mais grave problema social com que a freguesia se confronta: o direito à habitação.
É, pois, necessário, e possível, conceber para a zona do Alto do Restelo um projeto centrado na promoção pública de habitação a custos acessíveis, assente num plano urbanístico abrangente, elaborado sob os princípios do desenvolvimento urbano sustentável, assente num processo de participação que tenha como preocupação pensar com os moradores, associações e órgãos autárquicos locais, os espaços públicos adequados ao seu uso e apropriação, as cargas construtivas, a defesa do comércio de bairro, o reforço e a qualificação da rede escolar pública, o reforço do serviço de transportes públicos e a reformulação da rede viária, a dotação de espaços para funções sociais e projetos de inovação social.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico