Vacinas – a falta de clareza alimenta a desconfiança
As polémicas em que a vacina da AstraZeneca tem estado envolvida vêm-se agravando, prejudicando também a capacidade de as autoridades para passarem as mensagens aos cidadãos.
As especulações sobre a possibilidade de a Comissão Europeia não renovar os contratos com a AstraZeneca e a Johnson & Johnson para o próximo ano são o corolário de um processo de degradação de confiança que se arrasta há vários meses. A confiança é um bem precioso e muito delicado que foi quebrado em relação às vacinas. As fissuras vêm-se acentuando e são já indisfarçáveis.
As polémicas em que a vacina da AstraZeneca tem estado envolvida vêm-se agravando, prejudicando também a capacidade de as autoridades para passarem as mensagens aos cidadãos. Perante a opinião pública até já não parece valer a pena criticar os países que impõem restrições na idade da toma, reivindicar a autoridade superior da Agência Europeia do Medicamento (EMA) para se pronunciar por todos os Estados-membros, ou insistir nos pareceres científicos acerca do saldo positivo na ponderação risco-benefício para esta vacina.
Como criticar os países que restringiram a utilização da AstraZeneca aos maiores de 60 anos, mesmo sabendo-se que os vários casos conhecidos de formação de coágulos sanguíneos, inclusivamente os que provocaram mortes, ocorreram em pessoas com menos de 60 anos? Como reivindicar a autoridade da EMA quando esta manteve a primeira aprovação da vacina após o estudo dos seus efeitos adversos, isto é, quando já possuía informação precisa sobre o problema concreto a analisar? Como insistir apenas no tradicional binómio risco-benefício sem o articular com a severidade dos efeitos colaterais adversos, isto é, atendendo ao óbito de 18 pessoas em cerca de 86 casos na Europa.
Não ignoramos que o principal argumento que regra geral justifica a implementação de um recurso clínico na população é o do risco-benefício, o qual, natural e obviamente, também tem sido utilizado nesta apreciação da segurança das vacinas: o risco de contágio e de infecção severa por SARS-CoV-2 é bastante elevado e o de sofrer um tromboembolismo diminuto, atendendo ao número e casos registados em função do número de vacinas administrado (25 milhões). Mas a gravidade da trombose sanguínea não é análoga ao exacerbar de alergias (potencialmente grave no caso de choque anafiláctico), como se verificou com as vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna. A raridade de ambas as ocorrências tem consequências diferentes para quem as sofre. E ninguém quer integrar a estatística dos raros casos de óbito.
E quando esta intranquilidade, mesmo desconfiança, grassava já na opinião pública, eis que fomos surpreendidos esta semana com a decisão dos Estados Unidos de suspenderem a vacina da Janssen, da farmacêutica Johnson & Johnson, mais uma vez por registos de coágulos eventualmente associados à toma da vacina. Bastaram seis ocorrências, com o registo de um óbito, para os reguladores norte-americanos suspenderem a vacina, sem qualquer tipo de polémicas, contrariamente ao que sucedeu na Europa. Aliás, a própria Johnson & Johnson decidiu de imediato adiar a entrega da sua vacina à União Europeia para desenvolver mais estudos.
A opinião pública interroga-se necessariamente perante esta discrepância de procedimentos. Será que as análises complementares da EMA confirmaram a segurança da vacina da AstraZeneca? Parece que não, pois, até ao momento, não existe qualquer explicação científica validada para a formação dos coágulos. Mas a aprovação, suspensão ou reprovação de uma vacina não se tem de fundamentar em conhecimento científico? Diríamos que sim. Terá bastado uma análise estatística das ocorrências adversas?
Como todos os casos se verificaram em pessoas com menos de 60 anos, sobretudo mulheres, excluem-se da futura toma. Mas há alguma evidência científica de que a idade e o género constituam um factor de risco para a esta vacina? Não consta. Será possível que os coágulos se formem como resposta auto-imune? Nesse caso, a ausência de incidência nos mais velhos poder-se-ia justificar por o seu sistema imunitário ter menor capacidade de reacção. Porém, tal conduziria também a concluir que a eficácia da vacina seria igualmente mais reduzida nos mais de 60 anos. E, todavia, não se desperdiçam vacinas, e dão-se aos mais de 60 anos. Estarão as vacinas menos eficazes a ser dadas aos mais vulneráveis?
Não sabemos porque não há explicações lógicas e coerentes que tranquilizem o bom-senso. Não sabemos, o que, por si só, é um problema que dá azo a muitas especulações, não necessariamente acertadas.
Será que a discrepância de procedimentos se deve afinal à extrema escassez de vacinas disponíveis (factor clínico), ao atraso nas percentagens de vacinação da União Europeia (factor organizacional), à competição com o Reino Unido e os Estados Unidos (factor político)? As especulações reclamam dados científicos objectivos, rigorosos e independentemente validados. Enquanto não os tivermos, impõe-se a precaução e decisões noutro sentido serão infundadas, precipitadas e autoritárias.