Um Estado falhado
Quando as Leis não servem o Direito, quando os defensores da Lei não têm competências nem meios para o fazer e quando o poder soberano da Justiça é exercido por juízes que desafiam a nossa inteligência, algo de muito grave e importante está a acontecer. E, na ausência de forças internas que restabeleçam a credibilidade do sistema, resta-nos esperar sentados pelo tsunami que, um dia, vai aparecer por aí.
Em Portugal sabíamos que tínhamos um problema com a Justiça e com a aplicação do Direito, mas atribuíamos essas dificuldades, por um lado, às imperfeições das leis (muito em resultado de tortuosos processos legislativos e nunca objecto de uma revisão séria e profunda) e, por outro, porque a aplicação da Lei é feita por uma máquina burocratizada e sem meios. Com a apresentação televisiva do juiz Ivo Rosa no dia 9 de Abril, ficou claro que o nosso problema com a Justiça é, afinal, bem maior. Para além de legislação mal feita e incompleta e da pobreza de meios humanos e materiais dos serviços a quem cabe a defesa da Lei, estamos também à mercê de juízes cujas decisões são impossíveis de compreender.
E isto é sério, muito sério, para o futuro da nossa sociedade.
O Direito, e a sua correcta aplicação, é uma condição essencial para a existência de uma sociedade organizada. A razão pela qual o Homo Sapiens logrou ultrapassar em protagonismo todas as restantes espécies animais teve fundamentalmente a ver com a sua capacidade para se organizar em grupos maiores do que uma simples alcateia. Desde esse primórdio, muito tempo se passou, mas, para conseguir viver e operar em conjunto, o Homo Sapiens teve que inventar regras a que nós hoje chamamos o Direito. Sem a existência de regras colectivas e respeitadas por todos, os grupos colapsam, sem solução e sem futuro.
O Direito é um conjunto de regras que asseguram a coesão de uma determinada sociedade, regras essas que resultam da natureza do meio, da geografia e do tempo em que o grupo vive. O Direito é, afinal, a consolidação escrita de uma determinada moral, pelo que não funciona quando as regras são alienígenas, provêm de uma galáxia distante ou existem apenas por terem vigorado alguns séculos antes. O Direito é, sem dúvida, uma forma de poder opressivo que actua sobre os membros de um grupo que, individualmente, aceitam as limitações e os direitos que daí decorrem, com o objectivo de conseguirem sobreviver num grupo alargado. Um Direito em contradição com o entendimento que os indivíduos têm do que deve ser a sua Sociedade desagua inevitavelmente em revolução.
O que está a acontecer em Portugal é precisamente um momento em que a sociedade tem dificuldade em perceber quais são as regras, ou melhor, em que descobre que os acontecimentos ultrapassam o quadro moral subjacente à formulação do seu Direito.
E isto é sério, muito sério.
O tema da corrupção não tem sido bem tratado em Portugal nos tempos da democracia. A liberdade dada aos indivíduos, a par da ganância inata ao ADN do Homo Sapiens, leva inevitavelmente à tentação por parte de alguns (por vezes de muitos) de ultrapassarem, em benefício próprio e em desrespeito do colectivo, as regras de urbanidade que são o cimento de uma sociedade estável e funcional. Claro que o problema não está na democracia, já que uma ditadura assume facilmente formas de corrupção bem mais absolutas. Mas como em democracia as leis são feitas pelos representantes eleitos do povo, não existindo mecanismos adequados de governance e controlo, os escorregamentos à moral proclamada acontecem. Para que a democracia subsista, é absolutamente essencial que o Direito seja um instrumento efectivo da concretização do modelo moral assumido pelo grupo.
Como é patente, não é isto que está a acontecer em Portugal. Temos, como todos os povos ao longo da História, exemplos de atropelos mais ou menos monumentais ao Direito que dizíamos praticar. O exemplo de Alves dos Reis na 1.ª República e a incapacidade do Regime de lhe fazer frente abriu com certeza o caminho dos militares saneadores do 28 de Maio. Ora, hoje, no séc. XXI, o objectivo do Ministério Público em perseguir e punir os protagonistas do mais recente regabofe financeiro nacional que terminou na falência dos maiores grupos privados, num momento de bancarrota soberana, falhou fragorosamente.
É certo que provar a corrupção é algo difícil e, como se viu em Portugal, impossível mesmo de o fazer. No entanto, o que o Ministério Público conseguiu recolher foi, para um cidadão normal, mais do que suficiente para entender que as regras da decência foram ultrapassadas. Dado as vicissitudes que temos para a aplicação do Direito, foi possível a um indivíduo, neste caso ao juiz Ivo Rosa (a quem a sociedade atribuiu plenos poderes para cuidar do bem colectivo), destruir a acusação, abandonando os factos apurados. Primeiro, assumindo a prescrição temporal e, depois, acrescentando que, mesmo sem aquela, não havia provas de corrupção. Ivo Rosa citou até testemunhas ouvidas na instrução (que, aliás, trabalhavam ou tinham trabalhado para os arguidos em relação profissional ou comercial), que testemunharam que, no seu entendimento, também não teria havido corrupção.
Aceitar como boa a palavra dos arguidos e seus correligionários na negação de factos incriminatórios é uma argumentação incompreensível. A decisão do juiz Ivo Rosa teve ainda alguns momentos intrigantes, como foi o de recusar a existência de crime de fraude fiscal por ter sido o dinheiro obtido de forma ilícita, não havendo por isso a obrigação de o declarar. Cereja no topo do bolo, acabou por determinar a desoneração de culpa dos arguidos que eram administradores de empresas privadas (algumas das quais depois faliram), que tinham trocado entre si pagamentos de dezenas de milhões de euros a título das explicações mais fantasiosas. O facto de esses movimentos terem origem em contas-fantasma das empresas que administravam e não terem sido reconhecidos nas contabilidades respectivas não foi relevante para se concluir ter existido um acto de corrupção. Afinal, a corrupção só está prevista no nosso Direito quando promovida por um funcionário e, como é público e notório, os arguidos eram administradores. Poderia parecer impossível de acreditar, mas, pelos vistos, sendo um entendimento promovido pelos advogados da defesa, foi assim aceite pelo juiz de instrução.
O melhor estava reservado para o final da sentença quando o juiz considerou que a entrega em dinheiro de um dos arguidos a outro configurava, desta vez, corrupção, mesmo que não se soubesse para que acto concreto. Ser descartada a figura de corrupção nas acusações anteriores (onde foram movimentados, sem justificação aparente, dezenas de milhões de euros) e depois chegar à conclusão oposta apenas quando estão em causa envelopes de dinheiro é algo que também não é fácil de entender.
A decisão de Ivo Rosa teve um resultado lapidar: os originadores das dezenas de milhões de euros – que ninguém conseguiu explicar para que serviram – foram para casa (quase) descansados. Quanto ao arguido mais mediático, arrisca-se a uns anos de cadeia por causa de uns trocos, na companhia de outro arguido, esse sim considerado um verdadeiro corruptor, apesar de todo o Portugal ter compreendido qual a relação que os ligava.
Enquanto os donos disto tudo vão em paz, o espírito do mal e o seu companheiro de infortúnio arriscam-se (?) a conhecer a dureza da lei e vão servir de exemplo da justiça. A lógica dos bodes expiatórios é conhecida. Mas, como se sabe, mais tarde ou mais cedo, estas histórias acabam mal.
Quando as Leis não servem o Direito, quando os defensores da Lei não têm competências nem meios para o fazer e quando o poder soberano da Justiça é exercido por juízes que actuam fora do nosso entendimento e desafiam a nossa inteligência, algo de muito grave e importante está a acontecer. E, na ausência de forças internas que restabeleçam a credibilidade do sistema, resta-nos esperar sentados pelo tsunami que, um dia, vai aparecer por aí.
Isto é sério, muito sério.