Alunos pobres não são burros, mas a escola não sabe isso
O problema das populações migrantes e do sucesso escolar não é da existência de uma política de segregação. O problema é, verdadeiramente, por um lado, a trama social desfavorável a tais populações, e por outro a insuficiência das escolas em tratar o insucesso antes deste se manifestar.
Noticia-se um estudo, em título de reportagem por aí, como mostrando que os alunos migrantes são segregados nas escolas portuguesas. Quem conhece os estudos antropológicos sobre invisibilidade, segregação e racialidade sabe que existe uma interseção entre “raça”, situação económica e sucesso escolar. Isto significa que as populações migrantes e racializadas são, em larga escala, parte dos segmentos sociais mais desprotegidos e onde o insucesso escolar é, infelizmente, uma realidade. É doutrina comum nos estudos sobre sucesso escolar que este depende do grau de escolaridade da mãe, que é a pessoa que no seio familiar (ou em condição exclusiva) mais acompanha as crianças e jovens em idade escolar. Sucede que essas populações são, também, de baixa escolaridade, na sua larga maioria, o que enviesa, forçosamente, o sucesso escolar dos dependentes.
Assim, a segregação não é uma condição intrínseca à dinâmica sociológica escolar em Portugal. O que sucede é, antes de mais, uma reprodução permanente do insucesso escolar que recai sobre populações economicamente invisíveis, mas socialmente visíveis no jogo da alteridade, ou seja, o “outro” que é tanto invisível na sua condição de integração social apriorística, quanto visível nos termos dos referenciais culturais/étnicos.
Ao mesmo tempo, estamos diante de um outro problema de modelo escolar mais profundo, e que afeta, de forma transversal, as populações economicamente mais vulneráveis, independentemente da sua condição racial, cultural, ou de nacionalidade – o do sucesso escolar. A escola é, para o bem e para o mal, o laboratório mais profundo da sociabilidade e do futuro económico dos sujeitos. Em sociedades liberais de mercado, o mérito permanece como paradigma social cristalizado, i.e., uma ideia que desconsidera, ainda, não em sede teórica, mas na prática, as diferenças nas condições de partida, permitindo glorificar o sucesso ao invés da felicidade. Ora, isto cria um problema quando avaliamos o insucesso escolar. Por deficiência de revisão do sistema de ensino, o insucesso escolar continua a ser tratado in fine, ou seja, através da retenção dos estudantes ao invés de ser combatido nos primeiros sinais. Isto é resultado tanto da falta de políticas escolares para reverter esta situação quanto derivado da mitificação do sucesso, que opera na lógica da sobrevivência do mais forte. Sucede, contudo, que esse mais forte não é, sempre, o mais inteligente, mas antes o que vive em condições socioeconómicas mais estáveis, o que configura um privilégio de classe, que geralmente se traduz em privilégio de “raça” e nacionalidade. (Claro que a ideia de privilégio é um erro terminológico que as ciências sociais precisam rever, adotando uma nova designação que não seja politizada nem abra a porta a leituras equivocadas).
Ocorre, então, que máxime o insucesso escolar ao ser tratado in fine, é-lhe aplicada a “coima” de “retenção” do aluno, uma nova terminologia para uma velha solução: o chumbo. Ora, o chumbo não produz qualquer efeito positivo na vida do estudante, uma vez que o mesmo se vê reinserido numa nova turma, onde sem grande motivação irá ouvir novamente conhecimentos apreendidos, mas geralmente vê-se realocado numa turma de “repetentes”, que na esmagadora maioria dos casos funciona na mesma lógica que o sistema prisional: promove a reincidência, muito mais do que a reinserção. A contrario, promover a passagem de ano não resolve o problema da aquisição de conhecimentos, transitando de ano alunos impreparados. É por essa razão que a única solução passa por reforçar o acompanhamento dos estudantes numa fase precoce, quando os sinais de insucesso começam a surgir. Caso contrário continuaremos a aplicar ao ensino uma lógica de autorregulação de mercado, medida que se revela ineficaz.
Portanto, o problema das populações migrantes e do sucesso escolar não é da existência de uma política de segregação, porque isso significaria assumir que existe uma política pensada para essas populações, o que não existe (o que não significa a inexistência de segregação de estudos por motivos raciais, como acontece na escola privada, de forma evidente, por motivos económicos). O problema é, verdadeiramente, por um lado, a trama social desfavorável a tais populações, e por outro a insuficiência das escolas em tratar o insucesso antes deste se manifestar, através de acompanhamento mais eficaz dos estudantes e, bem assim, de evitar condenar os alunos pelas suas dificuldades, situação que pesa, de forma determinante, sobre a confiança das crianças e jovens. Há uma década realizei um projeto, pelo país, onde trabalhei com várias turmas de “repetentes”, onde a atitude de condenação por parte dos professores era evidente. E isto, sim, é um problema sério e estrutural.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico