A Nova Religião Ecológica
No dia da árvore, os meninos e as meninas desenham muitas árvores ou bosques, algumas escolas deslocam-se a jardins para que os miúdos aprendam a apreciar e a respeitar a beleza das árvores. Na prática e realidade, estão a repetir um culto com mais de dois séculos a cujas origens a ecologia é absolutamente alheia.
Foi a 21 de Março. A ideia, aparentemente inocente, de comemorar o “dia da árvore” surgiu na América nas últimas décadas do século XVIII. Não sei quem foi o autor desta trouvaille, sei que atravessou o Atlântico e foi adoptada com fervor pela nascente revolução radical (1792-4) em Paris. A primeira República Portuguesa, é claro, não podia ser ultrapassada pela devoção que a sua congénere e fonte de inspiração dispensavam à comemoração da Natureza, arranjando também um dia da árvore genuinamente nacional – e republicano de gema portuguesa. Quando da introdução em França deste rito pagão, o dia da árvore não emocionou ninguém, embora as hostes radicais, diga-se que sem grande convicção, tenham aderido às comemorações, assistindo aos ritos da nova religião e ouvindo com paciência os arrazoados de Robespierre.
Claro que não podemos avaliar o grau de devoção e endeusamento da Natureza por parte de Robespierre. O dia da árvore foi para ele, e uns outros tantos, um dia em que desafiaram a sorte: conforme conseguissem e persuadissem um séquito razoável de correligionários de que a árvore era um objecto de culto absolutamente laico, tinham ali, à mão de semear, uma nova religião perfeitamente secular e, por isso, dispensada dos rituais, individuais e colectivos, a cuja submissão o catolicismo (como outras crenças) sujeitava as pessoas. Por outras palavras, os homens substituiriam o que não passaria de uma superstição católica por uma religião criada por gente viva e racional. O carácter sagrado das árvores não diminuía pelo facto de resultarem da intervenção do homem na Natureza.
A esmagadora maioria católica da França nunca levou estas coisas a sério, como possivelmente até os próprios que as promoviam e encenavam. É impossível saber até que ponto o próprio Robespierre acreditava no que dizia e fazia, como não é possível adivinhar o que terão pensado um Danton ou um Condorcet. Certo é que os dirigentes radicais, que foram os donos e senhores da República jacobina, pressentiram que o facto revolucionário e parteiro da República (1792) era insuficiente para electrizar a França ou a maior parte dela. Já tinha havido vários cultos: o da Razão, por exemplo; a catedral de Notre-Dame foi instituída como Templo da Razão. Pululavam clubes e sociedades secretas em que eram debatidas a questão do culto e das religiões. A criação do dia da árvore inscreve-se nesta procura de algo que se pudesse homenagear sem submissão a um deus superior ao homem: o homem teria de achar em si mesmo a finalidade e razão de ser da sua existência. Na França da primeira república, a fé e o culto revolucionários eram afinal a principal religião, mas que, relativamente, só arrebatava um pequeno número de franceses.
Todavia, no entendimento de Robespierre, a total descristianização da França alienaria muitos putativos adeptos da revolução, pelo que seria necessário presentear o público com algo de transcendente. O culto do Ser Supremo fora inventado pelos filósofos iluministas do século XVIII. O Ser Supremo era “uma divindade impessoal que teria criado o Universo”. Mencionado desde o princípio da revolução, o Ser Supremo pareceu a Robespierre e a outros dirigentes revolucionários o expediente que, celebrado conjuntamente com o civismo e o patriotismo, proporcionaria a atracção e a coesão da sociedade francesa, fraccionada pela Revolução. Ou seja, Robespierre quis oferecer à França uma religião de Estado a fim de consolidar a República fornecendo um Ersatz para o catolicismo. Robespierre, porém, confirmando o ditado segundo o qual as revoluções devoram os seus próprios filhos, acabou no cadafalso no dia 28 de Julho de 1794 (10 Thermidor).
A primeira república francesa, sustentada pelo Terror, tinha de acabar e acabou de facto ao fim de dois anos (1792-4). Podemos tirar dela a lição de que muito dificilmente pode uma sociedade sobreviver com coesão e harmonia se lhe faltar o elemento religioso, ou então se miseravelmente subsistir alicerçada no Terror. O jacobinismo era estruturalmente ateu e, por maioria de razão, anticlerical. Em Portugal – como em toda a parte na Europa e não só –, o jacobinismo, amansado pelo desastre histórico do 10 de Thermidor, refugiou-se nas lojas maçónicas e manteve o deísmo e o anticlericalismo que estão inscritos no seu ADN. O dia da árvore é uma invenção jacobina e continua a ser evocado e celebrado todos os anos, embora actualmente o público em geral pense que é uma afirmação ecológica. Os meninos e as meninas desenham muitas árvores ou bosques, algumas escolas deslocam-se a jardins para que os miúdos aprendam a apreciar e a respeitar a beleza das árvores. Na prática e realidade, estão a repetir um culto com mais de dois séculos a cujas origens a ecologia é absolutamente alheia.
Finalmente, a religião. A verdadeira religião baseia-se numa doutrina e no reconhecimento de Deus como um ente inteiramente separado dos homens e que paira muito, muito acima deles. É escusado um Estado tentar impor uma religião, como arduamente o tentou a primeira República francesa que, sem espanto, fracassou. A fé provém de uma fonte interior impalpável e abstracta. Surge – creio eu – naturalmente e invade completamente o crente. As religiões laicas não são mais do que passa-tempos ou puras superstições. É preciso que as crianças que desenham compenetradamente árvores e bosques tenham a consciência de que a celebração da Natureza não tem hoje em dia nenhum significado religioso, tendo-se e o dia da árvore transformado numa espécie de homenagem à Nova Religião Ecológica.
Declaração de interesses: sou agnóstica.