Quem cuida das crianças em Cabo Delgado?

Quem me dera ter uma resposta boa e apaziguadora, que fosse honesta. Quem me dera poder dizer que os direitos daquelas crianças vão ser salvaguardados, como os de todas as outras crianças. Quem me dera.

As notícias sobre as atrocidades que se vivem em Cabo Delgado entram-nos pela casa dentro diariamente. A guerra, os corpos mutilados e as massas em fuga enchem os écrans de televisão e as páginas dos jornais. Vemos mães e filhos desorientados e famintos. Homens de olhar vazio, apreensivos e já sem esperança. Crianças órfãs que deambulam sem norte nem protecção.

Falamos de uma enorme crise humanitária e da violação brutal dos direitos humanos e das crianças, estas especialmente vulneráveis em razão da idade e nível de desenvolvimento.

Estas crianças vivenciam desgraças pessoais (maus tratos e negligência, abuso sexual, presenciar actos violentos) e familiares (homicídio e violação de elementos da família) de uma dimensão catastrófica, causadas por outros seres humanos. Veem assim reunidas diversas condições que tendem a agravar o impacto negativo do trauma.

Um trauma que é vivido na infância, o que aumenta a sua vulnerabilidade. Que é causado por outro ser humano, com crueldade intencional, o que potencia o desejo de vingança. E que é imprevisível e incontrolável, com uma duração prolongada, o que aumenta o desespero e o terror.

Como se sentem estas crianças?

Sabemos que o trauma afecta a sensação de segurança, a estabilidade e a confiança, ao mesmo tempo que destrói a compreensão que a pessoa tem do seu meio ambiente. Perde-se a sensação de previsibilidade e de controlo e aumenta a vulnerabilidade, a par de possíveis revitimizações. Frequentemente, estas crianças evidenciam critérios de uma perturbação de stress pós-traumático, cuja duração e intensidade vai depender de múltiplas variáveis. No entanto, uma coisa é certa: quanto mais tardar um processo de ajuda efectiva, pior o prognóstico.

Numa peça televisiva, alguém mostrava crianças a brincar, numa aparente normalidade. Não nos deixemos enganar. Muitas vezes, as crianças dizem que está tudo bem, sorriem e dão gargalhadas. Não significa que esteja tudo bem. Poderá ser apenas uma forma de mascararem a sua tristeza, o medo e a solidão, quando palavras faltam para descrever o horror que sentem por dentro. Emoções que, não raras vezes, evoluem para as chamadas reações dissociativas, estratégias de defesa que podem levar a um bloqueio da realidade e a um desligamento do ambiente envolvente. A realidade pode ser distorcida e levar as crianças a viverem num mundo de fantasia. Um mundo que é mais seguro, previsível e que elas controlam de alguma forma.

Quem cuida das crianças em Cabo Delgado?”, perguntou-me uma outra criança, incrédula e sem conseguir sequer equacionar a monstruosidade daquilo que acontece lá longe. Ainda assim, com a certeza de que algo muito injusto se passa.

Quem me dera ter uma resposta boa e apaziguadora, que fosse honesta. Quem me dera poder dizer que todo o mundo vai cuidar delas, que vão ser protegidas e ajudadas. Quem me dera poder dizer que vão receber comida, um tecto e muito, muito amor. Quem me dera poder dizer que os direitos daquelas crianças vão ser salvaguardados, como os de todas as outras crianças.

Quem me dera.

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