Fazer o caminho do luto em pandemia: como é que se ultrapassa a culpa?
Levar o inimigo invisível para casa e infectar familiares é razão para espoletar o sentimento de culpa. Mas quando alguém não sobrevive, fazer o luto é um processo extremamente doloroso, onde a culpa, ainda que irreal, está muito presente.
Desde o início da pandemia, que a covid-19 pode ser facilmente considerada a principal causa do sentimento de culpa, desde a transmissão do vírus à perda daqueles que mais amamos. A culpa é apropriada quando se prejudica alguém intencionalmente. Na maioria dos casos, é um sinal para agir — para fazer reparações, pedir desculpa e procurar melhorar algum aspecto nas nossas vidas, aconselham especialistas do luto.
José Eduardo Rebelo, fundador da Associação do Apoio à Pessoa em Luto (APELO), explica que “existem dois conceitos muito distintos, relativamente ao luto e em relação à necessidade de superação do mesmo. O conceito de culpa e de responsabilidade”. A culpa é algo “íntimo, da natureza moral de cada um” e parece ser um sentimento do qual as pessoas não se conseguem desprender, quando sabem que transmitiram o vírus aos avós ou aos pais e estes não resistiram à doença. Fica enraizada a ideia de que não se podem sentir bem, nem voltar à normalidade, que o luto não pode ser feito saudavelmente, acreditando ser a causa daquele sofrimento.
Tendencialmente, como esclarece Maria do Céu Martins, terapeuta do luto, os sentimentos de culpa são irreais. Ainda assim, “o ser humano tem muita tendência a culpabilizar-se”. Quando a culpa é real, em determinada circunstância, “só há um caminho, o caminho do perdão”, defende. Contudo, esse tem um “tempo variável para cada pessoa”, correspondendo ao tempo que “cada um precisa de viver até se reencontrar, reequilibrar e reestruturar após uma perda com impacto emocional profundo”.
Eis algumas estratégias para ultrapassar a culpa, fazer o luto e perdoar-se:
Aceitar a realidade da perda
Muitas vezes a culpa surge da necessidade de o ser humano encontrar uma justificação para tudo o que lhe acontece. Por isso, é importante “trazer para a mesa a constatação de que a vida é imprevisível”, defende Maria do Céu Martins. É um processo de “muita conversa, muita racionalização dos acontecimentos e das experiências de vida, que é para esta aceitação da imprevisibilidade não gerar uma desestruturação ainda maior, que impossibilite a pessoa de se reorganizar”.
Aceitar a realidade da perda poderá levar muito tempo, e apresentar diversos contornos, uma vez que além de envolver a aceitação intelectual, está dependente, também, da aceitação emocional. Aceitar a perda e compreender porque é que o desfecho foi assim. A culpa, neste caso, por transmitir o vírus a alguém que se ama, “pode assumir muitos contornos da culpa real”, mas tem de ser desmistificada porque “não o é exactamente”.
Compreender que não houve intencionalidade
Trata-se de um vírus, tem um comportamento distinto para diferentes pessoas e a transmissão não é feita intencionalmente. Deve ser feito o exercício de memória para interiorizar que se fez o melhor possível, que o contágio não foi intencional. José Eduardo Rebelo indica que “uma coisa é sentir-se culpado, outra é ser responsável”, e quando se trata da transmissão de um vírus não há responsáveis.
Fazer o luto
O luto apresenta um tempo diferente para cada pessoa e está dependente de alguns factores, como a relação com quem se perdeu, as circunstâncias da perda, a personalidade de cada um, e a existência de apoio ou rede social. O papel do grupo de pares, de apoio, é “ouvir incondicionalmente e não julgar” o outro, aconselha José Eduardo Rebelo.
Um luto saudável passa por diferentes etapas até à aceitação, é uma cicatrização lenta, mas possível, e tem de ser feito. O especialista recorre a uma imagem para explicar o processo: É como “milhões de nós, que nos ligam num laço afectivo”, a ser desatados lentamente.
Encontrar um sentido para a vida
“A questão do sentido da vida e de sabermos qual é o nosso papel no mundo é extremamente importante”, aponta Maria do Céu Martins, resumindo que este percurso deve começar a ser feito “desde sempre”, uma vez que “a forma como reagimos depende do significado que atribuímos às coisas”, explica.
Conseguir atribuir algum sentido, mesmo àquelas coisas que “são más e que nos magoam”, é a “forma de termos algum controlo”, defende. É importante ter esta postura em relação às coisas, ainda que o caminho seja demorado, “é o que nos vai ajudar a encontrar outros sentidos, outros significados, continuar a crescer como pessoa e a ser capaz de incorporar essas vivências na nossa existência”.
Procurar o perdão
Chegar ao perdão não é algo inatingível, como em determinadas alturas pode parecer. Trata-se de um perdão pessoal, intrínseco, sendo alcançado depois de analisarmos “muito bem os nossos comportamentos e intenções, percebendo que não controlamos tudo aquilo que gostaríamos de controlar, que o tempo é sempre progressivo e, portanto, não podemos voltar atrás”, defende Maria do Céu Martins, acrescentando que “podemos sempre emendar o percurso futuro e só podemos agir sobre o nosso próprio comportamento”. Aos poucos, esta noção deve ser incorporada, deve-se ir “assimilando as perdas que vamos tendo”.
“Nós temos de ser capazes de fazer o percurso de nos perdoarmos”, sublinha a terapeuta, ressalvando, ainda, que é um caminho “lento, gradual e complicado de se fazer”.
O caminho do luto é um processo essencialmente individual, que termina quando a pessoa completa a fase de luto, quando se é capaz de pensar na pessoa que morreu sem dor, lembrando recordações felizes, sendo capaz de reinvestir as suas emoções na vida e no viver. José Eduardo Rebelo afirma que “o luto faz-se sempre” e a culpa é “episódica”, fazendo em muitos casos, parte do percurso. O luto é passar de “um tsunami para uma praia segura”, leve o tempo que levar, conclui.
Texto editado por Bárbara Wong