A direita não está em crise
Do ponto de vista filosófico, económico e social, a direita é uma ideia, não um partido. E a ideia moderna de direita é a convicção que os interesses de certos indivíduos (os que vencem o jogo do mercado) devem prevalecer sobre outros, a noção de inviolabilidade de todas as forma de propriedade privada e uma desvalorização das desigualdades.
Muito se tem falado de uma suposta crise na direita portuguesa, europeia e americana. Creio que essa análise anda longe de ser realista. É facto que os partidos políticos da direita vão tendo oscilações nas suas votações, vão estando, ou não, nos governos e vão sofrendo transformações ao longo do tempo que, por vezes, se materializam em cisões, partidos novos (como os bem-sucedidos populistas identitários) ou no fim de antigos. Mas não penso que se deva chamar a isso “crise da direita”.
Do ponto de vista filosófico, económico e social, a direita é uma ideia, não um partido. E a ideia moderna de direita é a convicção que os interesses de certos indivíduos (os que vencem o jogo do mercado) devem prevalecer sobre outros, a noção de inviolabilidade de todas as forma de propriedade privada e uma desvalorização das desigualdades. No fundo, é a defesa da ideia de que o lado competitivo do ser humano é o mais importante (e aquele que tem que ser mais estimulado), pela crença de que é esse o caminho para a criação de riqueza material a nível global. Essa direita não está em crise.
Olhando para o panorama mundial, verificamos que o capitalismo é cada vez mais hegemónico, ao mesmo tempo que as entidades que assumem maior poder são as empresas privadas multinacionais, já não os Estados. É evidente que ainda existe poder estatal e colectivo, mas, também aí, a direita ocupa o seu lugar através dos partidos afins, que fazem o seu papel de tentar exercer o poder político. De resto, a vida nas organizações é ditada por filosofias da direita (outra vez a competição, a produtividade e a maximização do lucro como valores fundamentais) e as ideias, veiculadas nos média, na publicidade e até em muitas academias, são muito influenciadas pela direita.
Olhando para Portugal, vemos que as grandes empresas privadas (incluindo as donas de órgãos de comunicação social) e a gestão de instituições públicas de relevo estão, quase todas, dominadas por pessoas de direita. Na comunicação social, isso nota-se no protagonismo dado a certos jornalistas e colunistas de direita (o estudo do ISCTE MediaLab mostra bem esse viés).
Ao nível da União Europeia, o Partido Popular Europeu tem sido o partido dominante no poder, com a Comissão Europeia a ser dirigida por pessoas dessa área política (Barroso, Junker, von der Leyen), ou por pessoas que se deixam influenciar pela teia de interesses que todas as organizações empresariais de alto nível acabam por efectuar junto desses decisores políticos.
Em Portugal, apesar do Partido Socialista ter estado no poder nos últimos anos (mais do que o PSD e o CDS), a verdade é que muitas das políticas implementadas foram mais de direita do que de esquerda (como privatizações, desregulamentação de mercados, cortes no funcionalismo público ou alívios fiscais para o factor capital).
Obviamente, muitas pessoas à direita queixam-se que devia ter havido mais políticas de direita, que se devia cortar fortemente nos gastos públicos, no investimento público, que se devia pagar menos impostos. Mas essa ambição não estar 100% satisfeita não é sintoma de crise. Aliás, na democracia portuguesa, não só nunca o PCP nem o Bloco de Esquerda estiveram com responsabilidades governativas, como, dentro do PS, foi sempre a sua ala mais direitista, de Guterres a Sócrates, que triunfou. Mesmo durante a geringonça, o Ministério das Finanças, que é, no fundo, quem toma as decisões fulcrais, esteve sempre ocupado por pessoas filosoficamente próximas da direita.
Um resultado importante é que não foi por culpa de políticas esquerdistas que existiram os fracos resultados de crescimento económico nos últimos 20 anos em Portugal. Na verdade, foi a conjuntura à escala global, com o espalhar das políticas de direita, consagradas no Consenso de Washington (e muitas plasmadas nos Tratados Europeus), que dificultou a vida a países pequenos e com pouca capacidade de partida como Portugal. Políticas como a disciplina fiscal (para evitar défices orçamentais), as reformas fiscais (ampliando a base tributária e adoptando taxas marginais moderadas), taxas de juros moderadas (e determinadas pelo mercado) e taxas de câmbio competitivas (entregues ao BCE no caso de Portugal por causa da moeda única), livre comércio (apanágio da UE e da OMC), liberalização do investimento directo estrangeiro (vejam-se os vistos gold e outras benesses fiscais a empresa internacionais), privatização de empresas estatais (REN, EDP, CTT, PT, TAP, etc.), desregulamentação dos mercados ou a segurança jurídica para os direitos da propriedade privada, estão em progressão continuada desde os anos 80 do séc. XX e adensaram-se, em Portugal, a partir de 2000.
Obviamente que Portugal podia jogar melhor este jogo neoliberal e, por exemplo, tornar-se um paraíso fiscal. Tenho poucas dúvidas que isso contribuiria para um crescimento económico de curto e médio prazo. Tenho é dúvidas que funcionasse para aumentar a satisfação com a vida do cidadão português mediano. Por exemplo, o fenómeno da expulsão da classe média/média baixa das cidades (por troca com imigrantes ricos) adensar-se-ia num cenário de paraíso fiscal (como acontece em Londres, Dublin ou no Luxemburgo).
Acredito que o mundo precisava era de uma recentragem à esquerda (e não, não estou a falar de regimes de planificação central que, como se sabe, acabam por empancar), revitalizando a boa velha social-democracia, que rareia.
Apesar de termos, agora, Biden com algumas políticas recentradas (fugindo do radicalismo de Trump), continuamos a ter a direita no poder na Rússia, na Alemanha, na Inglaterra, na Índia, no Brasil, nas Filipinas, na Polónia, na Hungria, na Turquia, na Arábia Saudita, na Austrália, no Japão e um capitalismo de Estado na China. Esta realidade torna a implementação de uma social-democracia mundial muito difícil.
Porém, num mundo onde as desigualdades são crescentes e onde a insustentabilidade ambiental está provada, não vejo outra solução que não seja a criação de uma social-democracia à escala mundial que combata o dumping fiscal, social e ambiental. Chegado esse dia, então sim, poderemos falar de uma crise da direita, como a que sucedeu depois da segunda guerra mundial (com os sistemas de planificação central ainda a funcionarem e com a criação da social-democracia na Europa). Até lá, as notícias duma crise da direita são manifestamente exageradas.