O sufocante assédio consumista
A pressão para o consumo é contínua: basta abrirmos os olhos, ou escutarmos os sons, para sermos invadidos pela pressão consumista.
Uma das palavras que os defensores do sistema de mercado capitalista mais gostam de evocar é “liberdade”. Segundo as teses desses defensores, o sistema capitalista será o mais livre dos sistemas económicos, na medida em que as pessoas podem escolher o que consumir (e o que produzir se se tornarem empresárias).
Não querendo entrar aqui nas complexidades e diversidades associadas ao sistema capitalista de mercado (que pode conviver com democracias, com ditaduras e com diferentes enquadramentos culturais ou institucionais), é muito importante desmistificar a questão da liberdade: primeiro, porque não é fácil a qualquer pessoa conseguir virar empresária (por inúmeros entraves de acesso ao capital); segundo, porque a nossa liberdade de consumo é muito ilusória. Se é certo que, no capitalismo, costumava haver abundância de escolha de bens e serviços, há, também, uma pressão intensa para o consumo.
Mais, a própria gama de escolha torna-se, muitas vezes, excessiva, na medida em que dificulta o processo de decisão, gera a ansiedade da escolha e dissonâncias cognitivas, para além de aumentar o custo de oportunidade da decisão. E, como somos levados a consumir mais do que seria óptimo para nós, mais do que maximizaria a nossa felicidade, a suposta liberdade de consumir ou não consumir, a liberdade de escolher é, na verdade, uma ilusão.
O que acontece, é que as empresas competem entre si para ver quem consegue vender mais. E competem criando inovação e pressão sobre o consumidor. Essa pressão é desenhada, de raiz, pelos responsáveis do marketing, que pensam todo o processo, desde a criação dos bens e serviços até à sua entrega aos consumidores. E os departamentos de marketing contam com contributos de especialistas da cognição e do comportamento humano, o que torna as empresas capazes de actuar sobre os mecanismos de decisão dos consumidores, levando-os a consumir ao máximo.
O caso das redes sociais é paradigmático, uma vez que elas estão estruturadas de forma a viciar os utilizadores. Não por acaso, muitos de nós estamos dependentes das redes sociais, mesmo que não nos apercebamos (e até já há clínicas de desintoxicação dessa dependência). E o que é válido para as redes sociais, é válido para quase todos os consumos que realizamos. Os centros comerciais, por exemplo, são templos de consumo onde as pessoas entram para ver e consumir, e são pressionadas a consumir.
Aliás, a pressão para o consumo é contínua: basta abrirmos os olhos, ou escutarmos os sons, para sermos invadidos pela pressão consumista (por exemplo, quando vemos carros novos na rua, quando vemos produtos na publicidade ou nas montras, quando ouvimos referências às marcas, quando observamos os bens possuídos pelas pessoas dos nossos grupos de referência ou quando acedemos à internet, nos computadores ou nos telemóveis, ou vemos televisão e ouvimos rádio).
Também não por acaso, em alguns países existem leis que restringem a publicidade, nomeadamente a dirigida a menores, por se entender que as crianças são especialmente susceptíveis às influências da dita. Mas não nos enganemos, mesmo o mais consciente dos adultos não é imune ao assédio consumista. Esse assédio é de tal forma eficaz que faz do consumo a centralidade da nossa vida. A comparação que fiz entre um centro comercial e os templos não foi inocente. No capitalismo, os valores passam a ser as posses materiais, a ideia do se ser através do que se tem.
O problema, é que isso gera ansiedade desnecessária nas pessoas. Ansiedade, porque os novos produtos desvalorizam os que já temos (que passam a obsoletos ou a fora de moda) ou porque nos obrigam a ter que acompanhar os novos paradigmas tecnológicos, assim alimentando a incessante máquina de produção e de consumo.
Isto não significa que a produção e o consumo sejam, em si mesmo, um mal. Significa que não podem é ser tidos como bens absolutos, e que temos que ter um olhar crítico sobre esta realidade. Em particular, temos de reconhecer os efeitos negativos que a pressão consumista tem sobre cada um de nós e sobre as sociedades: é que não há liberdade, felicidade e sustentabilidade quando somos constantemente assediados para consumir.
Felizmente, já há quem esteja bastante ciente deste problema, desde os economistas comportamentais até aos economistas da felicidade, passando pelos criadores de políticas públicas de nudging, todos reconhecendo que é preciso actuar a dois níveis: 1. limitar a liberdade de assédio consumista; 2. criar mecanismos de orientação das pessoas para o seu próprio bem-estar.
O nudging (ou paternalismo liberal, como alguns lhe chamam) faz isso, quer a nível das políticas públicas, quer a nível de políticas organizacionais, sempre no sentido de encaminhar as pessoas na direcção correcta para o seu bem-estar. Na prática, funciona como uma espécie de contra-assédio, um equilibrador de assédios, que promove o bem-estar sustentável.
É errado argumentar que há liberdade de escolha, que existe a soberania do consumidor (tão propalada nas aulas de economia) perante tal capacidade de manipulação nas mãos das empresas. E acreditar que a concorrência empresarial combate esses abusos, esse poder, é pueril. A realidade demonstra-nos que abundam os casos de fraca concorrência e que vivemos num sobreconsumo que está a destruir o planeta e a minar o nosso bem-estar. Se queremos salvar o planeta e maximizar a nossa felicidade, temos que refrear esse assédio e fazer uma aposta explícita no bem-estar.