Dos equívocos sobre as plantas transgénicas
A tecnologia CRISPR permite modificar o genoma sem introduzir ADN exógeno. É verdade que não atingiu ainda o grau de perfeição que torne a edição perfeitamente limpa, mas o ritmo da inovação tem sido de tal ordem que não será optimismo exagerado antecipar que o atinja nos próximos anos.
Com a progressiva secularização do mundo ocidental, tem surgido um entendimento quase religioso do mundo natural difícil de conciliar com a instrumentalização da natureza essencial às sociedades humanas. Apesar das contribuições decisivas para a nossa saúde e alimentação, tendemos a associar à genética a noção de eugenismo e de interferência na ordem natural das coisas. Mas desde o advento da agricultura que o que entendemos por mundo natural vem sendo redefinido pela selecção artificial: para garantir a sua sobrevivência, o Homem transformou radicalmente as espécies agrícolas, como facilmente perceberá quem por exemplo comparar o milho cultivado com o seu ancestral natural (o teosinto) ou investigar a artificialidade do montado alentejano. Prolongando esta tradição milenar, a tecnologia que permite gerar plantas transgénicas veio no final do século XX facilitar imensamente a manipulação dos genomas e exacerbar os receios dos que defendem uma visão imaculada da natureza.
Os genomas das plantas modificam-se e perpetuam-se essencialmente de quatro formas: 1) por selecção natural ou fixação neutra nas populações de variações espontâneas no ADN (a natureza imaculada a funcionar); 2) por selecção artificial de variedades naturais (as técnicas tradicionais da agropecuária, nomeadamente o cruzamento selectivo); 3) por selecção artificial de variedades induzidas pela acção de agentes mutagénicos, tais como as radiações ou certas substâncias químicas; 4) através de técnicas de biologia molecular, que nas últimas décadas têm produzido as plantas “transgénicas”. Em 2012, uma nova abordagem molecular, conhecida pelo acrónimo CRISPR e que valeu às suas inventoras o Nobel da Química de 2020, veio revolucionar a edição do genoma.
Ao contrário das tecnologias de transgénese convencionais, que modificam o genoma pela introdução de ADN exógeno (como quando um autor introduz na sua obra uma passagem plagiada), a CRISPR permite editar o genoma de modo extremamente preciso, que pode ir ao detalhe de apenas alterar um nucleótido (uma letra, se mantivermos a metáfora do livro). Seria até possível defender que, em muitos casos, a tecnologia CRISPR não produz transgénicos, no sentido em que pode modificar o genoma sem introduzir ADN exógeno. É verdade que a CRISPR não atingiu ainda o grau de perfeição que torne a edição perfeitamente limpa, mas o ritmo da inovação tem sido de tal ordem que não será optimismo exagerado antecipar que o atinja nos próximos anos.
Em 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia rejeitou aliviar a regulação estrita que impôs a organismos geneticamente modificados (OGM) para as variedades produzidas por CRISPR.
Ao não facilitar a exploração desta tecnologia, a Europa na prática está a excluir os institutos com financiamento público, startups e pequenas empresas, deixando às grandes multinacionais e outros operadores fora da sua jurisdição o monopólio do uso da CRISPR para fins agrícolas. Perderá assim terreno para competidores directos com um grau de sofisticação biotecnológica equivalente ou já superior, como os EUA e a República Popular da China, onde há menos restrições à exploração destas tecnologias. A derrota nesta corrida terá inclusive um travo amargo, quando a Europa começar a importar alimentos que passarão por variedades naturais ou produzidas por mutagénese, pois não será tecnicamente possível perceber que, na verdade, foram geradas pela tecnologia CRISPR.
Apesar do feroz activismo antitransgénicos e da vontade de muitos em associar os transgénicos a uma tragédia, décadas de investigação não produziram um estudo credível que indique efeitos negativos dos OGM na saúde humana.
A possibilidade de editar genomas de forma mais limpa e significativamente mais simples e acessível vem agora ajudar comunidades de cientistas, empreendedores e agricultores a gerar soluções para garantir a alimentação da população mundial em expansão num contexto de alterações climáticas, conferindo maior autonomia de produção às populações locais e minorando a pegada ecológica associada ao transporte de alimentos, e contribuir para a sustentabilidade dos ecossistemas, produzindo variedades agrícolas que permitam reduzir drasticamente a utilização de pesticidas e fertilizantes. Vem ainda democratizar as tecnologias de melhoramento vegetal e permitir a pequenas empresas beliscar o poderio instalado e crescente das multinacionais agrícolas, se não forem criados entraves sem fundamento científico. Tenhamos presente que a demonização das plantas transgénicas nos media pode ter criado uma acidental aliança entre a opinião pública e perversos interesses económicos instalados.