Acolhimento familiar em Portugal: pré-conceitos e preconceitos

Preconceitos e pré-conceitos têm o tremendo poder de se tornarem problemas sociais graves e impeditivos de acções concretas na promoção da qualidade de vida e segurança de todos.

O decreto-lei que estabelece o regime de acolhimento familiar das crianças e jovens em perigo (Decreto-Lei 139/2019), bem como a sua regulamentação (Portaria n.º 278-A/2020), privilegiam o acolhimento familiar ao residencial aquando necessário a extraordinária medida da retirada de crianças ou jovens à sua família de origem. Porém, no terreno, temos um número diminuto de famílias de acolhimento e apenas cerca de 2,7% de crianças e jovens em sistema de acolhimento são direcionados para o acolhimento familiar.

Assenta sobre todos inverter radicalmente esta realidade. Para tal, importa perceber o porquê, aliado a uma estratégia de desconstrução de mitos gerados pelo desconhecimento, cenários (ultra)passados ou realidades externas à nossa, sobre o acolhimento familiar, investindo em testemunhos pragmáticos, com conhecimento de facto sobre o que é acolher.

A família de acolhimento não retira (“rouba”) filhos, netos, primos, sobrinhos

Pensar-se-ia óbvio que assim não o é, mas a noção permeia. No caso de colocação em acolhimento familiar, em fase alguma do processo de sinalização, acompanhamento e eventual retirada da criança ou jovem à sua família de origem, tem a potencial família de acolhimento qualquer voz, conhecimento, interferência, decisão ou acção no processo. A família de acolhimento “entra em jogo”, através da segurança social e/ou da sua instituição de enquadramento, apenas após decisão do Tribunal para tal medida de colocação, quando uma destas é chamada para identificar na sua bolsa de famílias de acolhimento o perfil daquela que melhor se adequará à criança ou jovem em específico. Entra-se, nesse momento, em contacto com a família de acolhimento selecionada para o caso, iniciando-se o processo de integração da criança ou jovem nessa família. O processo deve envolver uma rede de cooperação e comunicação com a família de origem.

A família de acolhimento não o faz pelo dinheiro

O acolhimento familiar em Portugal não é profissionalizado. No entanto, a família de acolhimento, devidamente formada para o efeito, recebe um valor mensal para colmatar despesas envolvidas no cuidado disponibilizado à criança ou jovem acolhido (este valor encontra-se presentemente atualizado e mais adequado, embora que ainda não efectivado). A criança ou jovem chega ao acolhimento familiar necessitada de um largo conjunto de intervenções especializadas, que vão desde o cuidado nutricional, clínico e clínico-dentário, ao nível educacional e psíquico/cuidados de saúde mental, que requerem seguimento regular e específico, recaindo frequentemente na procura de serviços privados e/ou especializados. Não deve em momento algum nem o acolher significar ser um “peso” no orçamento da família de acolhimento, nem questões financeiras serem um entrave ao acolher. Sobretudo, a criança ou jovem ao dar entrada no acolhimento —seja familiar, seja residencial— deve ter acesso a todo um sistema de cuidados que permitam, no devido tempo, aceitar, corrigir, ou cicatrizar lacunas e deficiências vicenciadas. É obrigação e dever da família de acolhimento o fazer, como é dever de um estado social dar as ferramentas para tal.

A família de acolhimento não é motivada pela adoção ou por um vazio emocional

A pessoa singular, ou duas ou mais pessoas, que se candidatam a ser família de acolhimento, passam necessariamente por um conjunto de avaliações especificas para o efeito, em que se determina que estão claramente resolvidas, ou definidas, questões de parentalidade e em que há uma estabilidade psico-afectiva e emocional para acolher. Pela lei Portuguesa quem se candidata a família de acolhimento não pode ser candidata a adopção. É absolutamente essencial a reflexão pessoal de cada um sobre as motivações para acolher; não pode ser com o intuito de vir a adotar quem se acolhe, e certamente nunca para uma “apropriação” da criança ou jovem. A adopção e o acolhimento familiar são caminhos distintos, assentes em temporalidade e objectivos intrinsecamente diferentes, que não diminuem em nada o cuidado ou dedicação de cada um.

A família de acolhimento pretende ser exatamente aquilo a que se propõe: uma família de acolhimento na sua natureza, definição e duração finita. Certamente com preocupações muito próprias sobre o futuro da criança ou do jovem ao seu cuidado —o seu bem-estar físico e emocional, segurança e atingir de potencial— mas não no sentido que deve por si ser adoptado como a solução para esse futuro, mas sim em fazer o melhor que pode e a tomar conta da criança ou jovem enquanto assim incumbida. O acolhimento familiar tem, assim, o seu término ou com o retorno da criança ou jovem ao seu meio natural de vida (família de origem ou encaminhamento para a família alargada), este o objetivo primário, ou o apadrinhamento civil, adoção ou promoção da autonomia de vida.

A família de acolhimento não compete com a família de origem

O acolhimento familiar é uma medida temporária, mas estabelece-se, idealmente, no seu decurso uma relação afectiva entre a criança ou o jovem e a família de acolhimento. É afinal inerente ao cuidar o afecto, colo e abraços. A resposta é individualizada e adequada às necessidades da criança e jovem, em toda a sua plenitude e conforme necessária, ao longo da duração da medida de acolhimento. A resposta da família de acolhimento não se limita, no entanto, à interação com a criança ou jovem.  Sendo o objectivo principal do acolhimento familiar a reintegração da criança ou do jovem na sua família de origem, quando esta detiver condições para o efeito, a família de acolhimento tem um papel central na manutenção de laços com a família biológica e nunca na competição com esta.

As interações não são necessariamente simples, afáveis ou produtivas, mas são organizadas, definidas e estruturadas com o superior interesse da criança ou jovem, e tendo em mente o projeto de vida e a reciprocidade da relação entre a criança ou jovem e a sua família de origem. No seu ideal, a família de acolhimento consegue desencadear uma relação pessoal e calorosa, no seu pior uma relação neutra, mas nunca destrutiva. Qualquer decisão de permanência da criança ou jovem na família de acolhimento, no processo de avaliação e renovação de medidas, no retorno ou passagem para outra alternativa, é foro do Tribunal e das entidades sociais, como o é a estruturação e decisão sobre o enquadramento do contato e visitas com a família de origem. É, finalmente, tido em atenção a idade da criança ou jovem, sendo que estes últimos já têm capacidades de decisão, assentimento e autonomia próprias que devem ser consideradas.

Preconceitos e pré-conceitos têm o tremendo poder de se tornarem problemas sociais graves e impeditivos de acções concretas na promoção da qualidade de vida e segurança de todos. É particularmente aberrante quando o seu reforço leva à perpetuação de mitos e posicionamentos afins que têm impacto direto e negativo sobre os mais vulneráveis. Importa investir na literacia sobre o acolhimento familiar, tal como na informação sobre o processo de sinalização, e até eventual retirada, de crianças e jovens em perigo do seu meio natural de vida se nenhuma outra alternativa tiver resolvido o contexto de perigo. Certamente que nem todos queremos ou podemos ser famílias de acolhimento, mas todos podemos fazer a nossa parte na promoção e proteção das crianças e jovens através do nosso apoio a medidas e contextos potenciadores do seu pleno crescimento e desenvolvimento.

Nadine Santos

Investigadora e docente na Escola de Medicina da UM. Família de Acolhimento. Membro da AjudAjudar.

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