A democracia portuguesa (ainda) não está em crise, mas sim “cristalizada”

A democracia portuguesa vive tempos desafiantes. A pandemia acentuou a palavra “crise”. Económica e social. Mas estará mesmo Portugal a atravessar o deserto na política? O ciclo debates PSuperior Talks tentou responder ao desafio de saber se a democracia está, de facto, com problemaS de confiança.

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Rui Gaudencio

Os fantasmas acerca da falta de confiança dos portugueses no sistema democrático têm deixado muitas pegadas no tecto dos partidos políticos. As críticas acerca da falta de competência, de transparência e de vontade em mudar fazem parte da história mais recente em Portugal, sendo na actualidade amplificadas pelas crises económica e social provocadas pela pandemia. Mas estará mesmo a democracia portuguesa em crise? Corremos o risco de ver desaparecer um regime político com “apenas” 46 anos? A pandemia veio acentuar uma crise já existente? O debate do ciclo PSuperior Talks A democracia em tempos de crise de confiança deixou várias pistas sobre as soluções para a saída desta aparente encruzilhada em que o país vive.

A frase “a democracia é o pior dos regimes, excepto todas as outras formas que têm sido tentadas de tempos a tempos” é atribuída a Winston Churchill, antigo primeiro-ministro britânico, entre 1940 e 1945 e entre 1951 e 1955. Até agora, a fórmula está a resultar em grande parte do mundo, mas isso não significas que seja eterna. “Podemos assistir à morte das democracias, assim como assistimos à morte do comunismo, que se apresentava como alternativa à democracia liberal”, disse António Costa Pinto, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e um dos três convidados deste debate online.

À mesma mesa virtual sentaram-se, também, Silvério Costa e Cunha, professor do Departamento de Economia e coordenador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade de Évora (UEv), bem como Henrique Gil, presidente da direcção da Associação Académica da UEv. Esta universidade foi a parceira desta jornada do PSuperior Talks, tendo a reitora Ana Costa Freitas salientado a importância do ensino na defesa do Estado democrático, “que temos de conhecer profundamente para exercer plenamente”. A abertura dos trabalhos esteve a cargo de Manuel Carvalho, director do PÚBLICO, para quem “é importante perceber os motivos” da crise da democracia, no sentido liberal em que a conhecemos.

No entender de António Costa Pinto, a alegada crise da democracia nos países ditos desenvolvidos passa por “não terem dinâmicas alternativas de sistema político”, lembrando movimentos como os surgidos no Maio de 1968 (França), contra a guerra no Vietname (Estados Unidos da América), ou a ofensiva terrorista em Itália (as Brigadas Vermelhas, nos anos 70 e 80). “A democracia coabita sempre com crises de representação, mas nos últimos anos não têm existido alternativas”, acrescentou.

Já Silvério Costa e Cunha acredita que “esta crise é normal em todos os sistemas políticos” no seu ciclo de vida: “nascem, vivem e morrem”. Porém, agora, há “uma sensação de mal-estar”, porque as pessoas não estão convencidas de que a democracia lhes proporcione “conforto suficiente”. Este investigador aponta o dedo à “baixa cultura política” existente em Portugal como entrave à reinvenção do sistema político democrático.

A abstenção jovem e a ausência de dinâmica

Em que patamar ficam as gerações mais novas, face aos discursos mais populistas? Hugo Gil defende ser “difícil falar de democracia e não falar dos partidos. Os jovens estão alheios, não votam e isso compromete o futuro”. O líder estudantil critica os partidos políticos por manterem a mesma abordagem no discurso para os mais jovens: “Os partidos têm de adoptar uma nova estratégia e fazer com que os jovens se sintam ouvidos. Se não houver agora um aviso de que é preciso mudar o discurso, haverá o problema de [a democracia] não ser representativa.”

No entender de António Costa Pinto, os partidos políticos têm uma “escassíssima dinâmica de experimentação, de reforma e de mudança”. “A democracia portuguesa está congelada no que diz respeito ao sistema eleitoral”, defende. No entanto, vislumbra-lhe virtudes: “Tem pelo menos a vantagem de muito rapidamente dar voz ao descontentamento, ao protesto. Dá liberdade ao eleitorado para estar mais próximo dos partidos que dão voz ao descontentamento, ainda que conjuntural.”

Silvério Costa e Cunha concorda com o “congelamento” da democracia em Portugal, sublinhando que o regime deve saber renovar-se. Mas, adianta, “o que é espantoso é que não há alternativas globais. Não há um plano político a prazo e há uma grande fragmentação [partidária], o que impede um reforma consistente do sistema político”. Este professor universitário vai mais longe, ao dizer que a classe política actual “não é tão bem preparada” como seria desejável, já que os partidos são “meros organismos de integração”, ao invés de promoverem o pensamento próprio. Além disso, diz, “há grupos de interesse a actuar, uma espécie de conúbio entre interesses organizados que depois influem nos partidos”.

Tomando como exemplo o caso do antigo primeiro-ministro José Sócrates, cujo processo ainda corre nos tribunais, os convidados deste debate do PSuperior Talks concordaram ser negativo para a imagem dos actores políticos. António Costa Pinto aborda o tema noutra perspectiva: “Este caso é muito interessante, porque escapa à corrupção política tradicional. Provar em tribunal que [Sócrates] era corrupto a nível político é um caso fascinante do ponto de vista analítico.” Silvério Costa e Cunha lembra haver registos de casos de corrupção já na Mesopotâmia – “o problema aqui é que a opinião pública é de massas e é superficial, julga logo a pessoa”.

O papel negativo que as redes sociais podem desempenhar neste capítulo do julgamento fácil e imediato foi também abordado, com Hugo Gil a desafiar os partidos a utilizarem melhor esses mecanismos de comunicação para chegar a mais camadas da população, bem como a combater a desinformação que circula. “Estão mais preocupados com o tempo de antena que vão ter. As redes sociais não são uma ameaça à democracia, podem até ser um reforço da mesma”, disse.

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