Do tempo do fim das ideologias, aos tempos em que tudo é ideológico
A aplicação de rótulos ideológicos à simples constatação de factos tem outro nome: censura. Uma febre censória que, não se satisfazendo com os factos actuais, se arvora o direito de julgar, aplicando-lhe as devidas punições.
Recordo-me de que quando estava a acabar a minha licenciatura, o discurso público e académico anunciava o fim, ou a morte (para mais precisão e impacto), das ideologias. Justificar-se-ia, tal anúncio, pelo conjunto de evoluções políticas e geopolíticas, económicas e sociais que marcaram o final do século XX.
E referia-se, essa análise prospectiva, às ideologias enquanto formas de entender o mundo e de o organizar política, social, económica e, até, culturalmente.
Formas de entender a realidade, sustentadas por reflexões aprofundadas, fundamentadas e intelectualmente elaboradas, que seriam submetidas, por seu turno, a apreciação pública, gerando adesões e/ou contestações, e criando os movimentos e reformas sociais, que foram moldando o mundo tal como o conhecemos.
Todavia, e numa primeira abordagem, estaria tentada a afirmar que tal anúncio falhou de forma rotunda, visto que, nos dias de hoje, parece que tudo se converteu em “ideologia”.
A mais simples constatação de factos, comuns no nosso quotidiano de gente comum, converte-se num manifesto ideológico, imediatamente escrutinado e objecto da produção de libelos vários, por parte dos seus escrutinadores, nessas modernas “ágoras” em que se transformaram as redes sociais e, por arrastamento, a própria comunicação social.
Fala-se da necessidade de regras e referências, recebe-se um carimbo ideológico. Fala-se de desigualdades entre mulheres e homens, sai-nos um carimbo de sentido oposto.
Fala-se de uma justiça incongruente, e logo se erguem as vozes rotuladoras. Fala-se de pobreza, e mais vozes se levantam.
Fala-se de violência doméstica ou de racismo, e forçam-nos ao encaixe num quadrante ideológico.
Fala-se das condições de acesso à saúde, e logo se preparam as fogueiras dos “Torquemadas” virtuais. Fala-se das condições da educação, e mais umas achas se atiram para o lume.
Fala-se de assimetrias territoriais, do envelhecimento da população, do desapoio das famílias, da percepção de insegurança, dos baixos rendimentos ou da elevada carga fiscal, e de imediato recebemos, como resposta, os apupos ou aplausos ao nosso “posicionamento ideológico”.
E, no entanto, nada disto é ideologia, mas sim factos! Observáveis e até quantificáveis.
Factos, ou seja, realidade. E a sua constatação não é ideológica. O que, sim, poderá ser ideológico é o modo como se encaram e se enfrentam essas constatações. As leituras que se fazem da realidade e as propostas que a respeito dela se formulam.
A aplicação de rótulos ideológicos à simples constatação de factos tem outro nome: censura. Uma febre censória que, não se satisfazendo com os factos actuais, se arvora o direito de julgar, aplicando-lhe as devidas punições, o passado.
Por isso escrevi acima que, numa primeira abordagem, estaria tentada a assumir o rotundo erro do prenúncio de fim das ideologias. Porém, numa segunda análise, a verdade é que as ideologias, enquanto sistemas de valores e princípios, coerentes, elaborados, sistemáticos e intelectualmente validados, parecem, de facto, ter desaparecido.
E tomou-lhes o lugar uma amálgama de ruído acéfalo, maniqueísta e seguidista, em que o debate de ideias é substituído pelos mais ignóbeis ataques “ad hominem”, e em que a reflexão ponderada é substituída pela reacção precipitada e oca, em forma de “gostos” ou “não-gostos” e aferida em número de “partilhas”.
E celebramos esta vozearia de estridências, em nome daquilo a que insistimos em chamar liberdade. Uma liberdade em que tudo vale tudo, pela simples razão de que, na verdade, tudo passou a valer nada.