Está ali uma armadilha e fui eu que a montei

Se há um ano eu começava a pensar em desligar por volta das 18h, hoje isso é raro. Às 18h30 ainda está tudo online. Às 19h obrigo-me a desligar, para acordar no dia seguinte e ver e-mails recebidos por volta das 23h.

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Rui Gaudêncio

Às 19h30, ligaram-me. Era das finanças. Agradeço a dedicação da pessoa que o fez. Não tinha de o fazer. Muito menos para me explicar coisas que eu tenho a obrigação de saber. Mas, enquanto o fazia, deixou escapar: “Estamos em casa e o PC está mesmo aqui, não é?” E eu pensei neste texto.

Mesmo contando com breves períodos de desconfinamento, a normalização do teletrabalho faz um ano esta semana. Principalmente na área do digital, que é a minha. Primeiro estranhámos, mas depressa se entranhou. As ferramentas são praticamente as mesmas de há uns meses. Juntámos-lhes umas outras, mais ligadas à gestão de trabalho e de recursos humanos. E tentámos manter uma espécie de normalidade rotineira, dentro do que chamámos “novo normal”.

Lembram-se disso? Coisas simples como dedicarmos um espaço da casa para o trabalho ou sairmos do pijama e vestirmo-nos. Adaptámo-nos. Bem e depressa. E depois fomos para lá do que – provavelmente – é aceitável. Por estes dias, estou pronto para sair de casa por volta das 8h30. Só que, agora, o trajecto é bem mais curto. Já não dá para ler o jornal ou um capítulo do livro; mal chega para uma música e muito menos para um podcast. Deixei de encontrar uma razão para fazer o quer que fosse que fazia numa hora que era minha, entre a casa e o escritório.

Porque eu já estava no escritório. Porque “o PC está mesmo aqui” e mais vale abrir o e-mail. Bem sei que não é propriamente um escândalo abrir o e-mail às 8h30. Mas, a partir desse momento, estamos a trabalhar. E o hábito generalizou-se. Há quem trabalhe enquanto toma o pequeno-almoço, por exemplo. Talvez ainda de pijama, acordado há um quarto de hora. Foi-se a manhã e, em casa, o horário de trabalho lá se foi imiscuindo também pela hora do almoço.

Se há um ano eu começava a pensar em desligar por volta das 18h, hoje isso é raro. Às 18h30 ainda está tudo online. Às 19h obrigo-me a desligar, para acordar no dia seguinte e ver e-mails recebidos por volta das 23h. Ou para lá disso. Imagino que o meu caso seja comum e, por isso, sinto-me confortável em afirmar que, ao longo do último ano, um grande número de pessoas passou a trabalhar mais duas horas (vá), por dia. Mais dez horas por semana.

Mas, só para ter a certeza: digamos oito horas. No final de uma semana, passámos a trabalhar mais um dia. Agora imagine uma pequena empresa com dez pessoas, nestes moldes. No final de uma semana, a empresa obteve mais dez dias de trabalho. E eu não sei se demos por isso. Demos?

Quando este “novo normal” voltar ao normal, voltam os horários de trabalho? Ou a exigência, entretanto criada pelo hábito, vai manter-se? Não é difícil imaginar que isso aconteça: basta que o esforço deixe de ser para nos adaptarmos e passe a ser para nos reerguermos. Mais ainda se os planos para o futuro próximo estiverem a contemplar também o passado recente. Nesse caso, o mais certo é virem a pecar por excesso, ou a levarem-nos ao burnout final e a níveis de saúde mental mais reduzidos.

Hoje (desde há muito, aliás) estamos todos online, a todo o momento. Talvez fosse benéfico conversarmos sobre o direito a desligar do trabalho, antes de discutirmos a implementação de sistemas de teletrabalho. Nem que seja só para não cairmos numa armadilha criada por nós próprios.

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