Relançamento da cooperação transatlântica

A nova agenda transatlântica é imprescindível à coesão europeia e à superação de vários desafios do novo paradigma da globalização. É também um contributo para ajudar os EUA, que precisa mais do que nunca que as alianças funcionem.

A presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE) poderá constituir uma oportunidade única para apoiar a refundação da relação transatlântica, depois da crise existencial dos anos de Donald Trump.

A pandemia covid-19 reforçou a tendência de afastamento verificada nas relações transatlânticas, nomeadamente entre os EUA e a UE, na presença de um Reino Unido – com posicionamento incerto – , tendencialmente alinhado com os EUA, e de dois espectadores atentos: China e Rússia. A eleição de Joe Biden veio desanuviar o ambiente pesado que imperava sobre a velha relação transatlântica. De facto, o antigo Presidente dos EUA criou um fosso entre a NATO e os restantes Estados-membros. Mas a Aliança Atlântica já tinha deixado de ter uma importância central para Washington, uma vez que o centro de gravidade da sua estratégia se desviou para o Pacífico.

Tal como em outras áreas da vida humana, também na cena internacional a pandemia covid-19 veio aprofundar tendências e alterações já em desenvolvimento. Essas alterações parecem ter-se acelerado no que toca aos arranjos cooperativos transatlânticos. É verdade que aquela que é a relação multilateral mais complexa e multidimensional da política internacional há muito que estava sob pressão. Mas foi a covid-19, exacerbando essas condições pré-existentes, que questionaram definitivamente o eixo central da chamada ordem liberal.

Com a pandemia em curso, os termos originais desta relação deixaram de ser válidos. Até agora os europeus agiam sob a convicção de que as administrações americanas podiam ir mudando – e com elas o seu estilo e o modo como interagiam com as capitais europeias –, mas a política externa dos EUA para com a Europa mantinha-se inalterável.

O principal efeito da pandemia foi o de evidenciar as fragilidades dos nossos sistemas sociais, inclusive daqueles que resultam da distribuição do poder e da construção de reputações a nível internacional. Ora, é inegável que a China foi quem melhor soube gerir os efeitos geoestratégicos da crise sanitária e quem mais habilmente trabalhou a sua imagem a nível global.

Por outro lado, a crise da covid-19 veio confirmar aos EUA que a China é o adversário sistémico. E, independentemente da eleição de Joe Biden a política de Washington será essencialmente determinada por esse facto. Só que essa não é a leitura dos países europeus. Antes, estes variam substancialmente no modo como encaram as iniciativas de Pequim. Mas Washington tem de trabalhar muito melhor com os aliados se quiser afirmar-se na competição global com Pequim.

Os EUA precisam de aliados e estes precisam dos EUA para robustecer uma frente democrática mais firme na resolução de um conjunto de riscos globais: climáticos, digitais, securitários, comerciais, migratórios, sanitários e de desigualdades sociais. Esta é a principal conclusão da agenda transatlântica em cima da mesa. Onde é que a China entra? Antes de mais, no âmbito da pandemia, com boa coordenação no investimento, disponibilização e distribuição da vacina, restituindo credibilidade e meios à Organização Mundial da Saúde sem deixar de apontar um caminho para a sua reforma.

Neste sentido, uma estratégia transatlântica pós-covid não deve ser um sinal de hostilidade a Pequim, o que não quer dizer que não venha a reflectir alguns sinais que reconheçam a necessidade de maior independência estratégica, nomeadamente, na produção e distribuição de material de saúde e farmacêutico.

Não menos relevante, é a intensificação geopolítica – ancorada na Aliança Atlântica – para influenciar um quadro normativo alargado de regulação comercial e um roteiro de procedimentos negociais bastante mais construtivo do que bloqueador de soluções globais.

Com efeito, a partir dos traumas pandémico e climático pode haver margem para reconstruir uma plataforma de trabalho transatlântico que faça pontes com Pequim, nomeadamente na frente tecnológica o que exige a consolidação de uma relação política mais estreita entre Bruxelas e Washington.

A China ocupará, pois, o centro do novo relacionamento entre as duas margens do Atlântico em todos os domínios, incluindo o da segurança. E aqui a UE não tem muito tempo a perder para tentar vencer as suas manifestas divergências de interesses e de visões.

Importa ainda sublinhar, que a declaração conjunta da última cimeira da NATO, em 2019, continha pela primeira vez uma referência à China, considerando o seu “comportamento geopolítico” como um “novo facto” da ordem internacional. Por outras palavras, a NATO ainda está a reflectir sobre como se deverá adaptar aos exigentes desafios estratégicos que o Ocidente tem pela frente — a ascensão nada pacífica da China à escala global, para além do regresso de uma Rússia igualmente revisionista.

Corre então a Europa o risco de se tornar irrelevante, deixando-se emparedar entre a rivalidade sino-americana? Não necessariamente. Mas, para tal, precisa de trabalhar os termos de uma nova relação transatlântica, que devia ter dois vectores: materialização de um novo modelo económico global mais resiliente, com diversificação das cadeias de abastecimento e regulado por uma estrutura de governança adequada aos tempos modernos; e manutenção da NATO como aliança militar nuclear, mas com a sua acção a ser reforçada por um fórum político transatlântico com competências para responder aos desafios emergentes.

Acresce, que num contexto de volatilidade agravada, a Europa mostrou-se desamparada nas questões de segurança. A Alemanha, vendo que a UE não avança no plano militar, está ela própria a criar um exército europeu. E, já se debate internamente, se deve ou não ter armas nucleares!

Para a UE se fortalecer deverá tirar partido das duas oportunidades que o sistema internacional lhe oferece: o reforço financeiro e militar da NATO vindo dos dois lados do Atlântico; e gerir a abertura de democracias asiáticas, especialmente a Índia, para a criação de novas parcerias estratégicas sem esquecer a cooperação com África.

A nova agenda transatlântica é imprescindível à coesão europeia e à superação de vários desafios do novo paradigma da globalização. É também um contributo para ajudar os EUA, que precisa mais do que nunca que as alianças funcionem. Talvez seja esta a grande oportunidade para a relação transatlântica, mas, sobretudo, para a própria UE, permitindo que consiga ultrapassar as suas fraquezas, as suas rivalidades internas, as suas ilusões.

A Administração Biden vai trazer maior clareza e menos tensão às relações transatlânticas e à NATO, que continua a ser essencial para a segurança e defesa internacionais. Com mais ou menos sucesso muita da política internacional relevante passará por Lisboa nos próximos meses.

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