O cinema das realizadoras portuguesas
No ano atípico de 2020, não contando com Vitalina Varela, de Pedro Costa, os filmes portugueses com maior visibilidade no país e no estrangeiro foram realizados por mulheres: Listen, de Ana Rocha de Sousa, e A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos. Coincidência, acaso ou facto pertinente? Será uma abordagem de género relevante para se pensar o cinema que se faz em Portugal?
Cinema realizado por mulheres no regresso às salas de cinema
Em julho de 2020, estreou-se em sala o programa Três Realizadoras Portuguesas. Juntou três curtas-metragens realizadas por três jovens mulheres em 2019: Dia de Festa, de Sofia Bost; Ruby, de Mariana Gaivão; e Cães que Ladram aos Pássaros, de Leonor Teles.
O programa teve estreia simultânea no Cinema Trindade, no Porto, no Cineclube de Faro e no Cinema Ideal, em Lisboa, entre outras salas do país. O cartaz de divulgação encontrava-se espalhado pelas ruas destas cidades. Algumas sessões contaram com a presença das realizadoras, para participação num debate depois da projeção dos filmes.
Foi o caso da estreia no Cinema Ideal, que, com a capacidade da sala reduzida por imposição da pandemia da covid-19, acabou por esgotar a lotação. Estiveram presentes, para além da produtora de duas das três curtas-metragens apresentadas, as realizadoras Mariana Gaivão e Leonor Teles.
Nos passeios estreitos da Rua do Loreto, onde fica o Cinema Ideal, em Lisboa, enquanto chegavam os espectadores para a sessão, amontoavam-se grupos de pessoas. Um carro da PSP em patrulha fez com que os organizadores da sessão dispersassem esses grupos — proibidos em tempos pandémicos — encaminhando-os para dentro do cinema.
Esta foi, assim, uma sessão triplamente transgressiva: no final do estado de emergência, juntou muita gente num espaço público; apresentou três curtas-metragens, um formato muito pouco difundido nas salas de cinema fora do “circuito alternativo” dos festivais e cineclubes; e exibiu três filmes realizados por mulheres em que o facto de as realizadoras serem mulheres era um critério e não um mero acaso.
A sessão poderia ter gerado uma discussão alargada, na sala de cinema e para além dela, sobre a sub-representação das mulheres no mundo do cinema em Portugal. No entanto, não foi esse o caso...
Também em julho de 2020, circulou, em mailing lists e nas redes sociais, uma nota sobre o programa desse mês apresentado pela Cinemateca Portuguesa. Após o encerramento decretado pela chegada da pandemia, a Cinemateca retomava as suas atividades presenciais abertas ao público. O programa de reabertura, simbolicamente intitulado E a vida continua, não incluía um único filme realizado por uma mulher. Nada de novo — a vida continuava, de facto, como dantes.
Como tem vindo a ser hábito na programação da Cinemateca, as únicas mulheres em destaque eram as que se encontravam à frente da câmara — e já falecidas: neste caso, Maureen O’Hara e Amália Rodrigues. A nota anónima de protesto, inspirada naquela que, em 1986, as Guerrilla Girls tinham dirigido às artes visuais, sublinhava precisamente esse facto.
Tendo até chegado à direção da Cinemateca, esta nota poderia ter gerado um debate público importante sobre a diversidade no cinema e a necessidade de se mostrar com maior regularidade o trabalho de realizadoras (portuguesas, e não só) do passado e do presente. No entanto, também não foi esse o caso...
Ausentes ou invisíveis: a história das realizadoras portuguesas
Em Portugal, a pouca notoriedade das realizadoras de cinema tem sido assumida como uma questão meramente circunstancial. Não tem levado nem ao desenvolvimento de grandes debates públicos, nem à perceção da necessidade de ação.
Como é o caso noutras áreas da sociedade e da criação artística portuguesa, no cinema, as mulheres são muitas vezes invisíveis. Porquê? Por um lado, porque há (ou havia) poucas mulheres a filmar. Por outro, porque o seu trabalho é raramente exibido.
Houve figuras femininas importantes nos primeiros anos do cinema em Portugal, como Virgínia de Castro e Almeida, que produziu alguns filmes nos anos 1920. Mas o primeiro filme realizado por uma mulher em Portugal, Três Dias sem Deus, de Bárbara Virgínia, apenas se estreou em 1946.
O segundo filme realizado por uma mulher em Portugal foi Trás-os-Montes, co-realizado por Margarida Cordeiro e o seu marido António Reis (1976). No mesmo ano, Noémia Delgado realizou Máscaras (1976), e Solveig Nordlund, Monique Rutler e Manuela Serra começavam a desenvolver os seus primeiros projetos para cinema.
Ainda assim, de acordo com dados apresentados na tese de doutoramento de Ana Catarina Pereira sobre o tema, entre 1946 e 2009, as mulheres em Portugal realizaram apenas 40 longas-metragens — ou seja, menos de um filme por ano.
Entre 2017 e 2019, desenvolvi, com a investigadora Hilary Owen, um projeto académico sobre este tema, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Foram organizadas várias iniciativas, incluindo uma mesa-redonda e uma exposição, intitulada Realizadoras Portuguesas, em janeiro de 2019, em Lisboa.
Nessa mostra, assim como no livro que resultou da investigação desenvolvida, foram projectados e discutidos filmes de realizadoras incluindo Margarida Gil, Teresa Villaverde, Raquel Freire, Solveig Nordlund, Catarina Mourão, Marta Mateus, Margarida Cardoso, Susana de Sousa Dias, Inês de Medeiros, Rita Azevedo Gomes, Joana Pimenta, Salomé Lamas, Cláudia Varejão e Leonor Teles.
Embora seja possível extrapolar alguns números a partir de dados publicados pelo Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), quanto aos projetos apoiados em cada ano, não existem dados estatísticos recentes quanto ao número de realizadoras no ativo. Portugal parte praticamente do zero, uma vez que a média de filmes realizados por mulheres entre 1946 e 2009 é inferior a 1. Será 2020 um ano de viragem?
Duas das referidas três realizadoras portuguesas que estrearam filmes em sala, assim como Ana Rocha de Sousa e Catarina Vasconcelos, que viram as suas obras reconhecidas internacionalmente em 2020, não estavam incluídas na nossa pesquisa do ano anterior. Isto parece indicar que o número de mulheres a filmar em Portugal tem vindo a crescer nas últimas décadas, e que a visibilidade do seu trabalho também tem aumentado.
Mas será que faz sentido agrupar estas mulheres e o seu trabalho na categoria de realizadoras, no feminino?
Realizadoras no feminino: o género enquanto questão política
No debate que se seguiu à estreia de Três Realizadoras Portuguesas no Cinema Ideal em Lisboa, a moderadora Teresa Vieira perguntou às duas realizadoras presentes se era importante ler o seu cinema enquanto “feminino”. Uma delas respondeu com firmeza: “Não há nada de específico, ou que afete o meu cinema, pelo facto de ter um útero”.
Este tipo de resposta não é inédito em Portugal, onde muitas declarações públicas por mulheres artistas começam com a já célebre afirmação: “Eu não sou feminista, mas...”. Para a socióloga Virgínia Ferreira, aliás, a principal “ideologia feminista” a disseminar-se em Portugal no pós-25 de Abril é um formato difuso e oficial de feminismo, que subentende uma aceitação consensual das questões de género sem que seja necessário debatê-las.
Ou seja, prevalece a ideia de que para que exista “igualdade” não se pode denunciar a desigualdade, mesmo quando ela é tão evidente. Isto tem levado muitas mulheres com voz na esfera pública a demarcarem-se do facto de serem mulheres, como se isso minorasse o percurso profissional. Esta atitude tem consequências óbvias para o grau de desinteresse, desligamento e inação que o tema tem gerado no Portugal contemporâneo.
A recusa das realizadoras em Portugal em se identificarem como “feministas”, ou mesmo “mulheres”, explica em parte o porquê da questão do género não se ter tornado ainda suficientemente forte para ser encarada como tema prioritário a debater ou problema político a solucionar.
Ao mesmo tempo, “útero” é uma palavra-chave: ela remete para as ideias de maternidade e família que são, muitas vezes, temas dos filmes destas mesmas realizadoras. Das curtas-metragens das Três Realizadoras Portuguesas, entretanto editadas em DVD, duas delas, Dia de Festa e Cães que Ladram aos Pássaros, têm como protagonistas mães solteiras. Ruby debruça-se não sobre a família, mas sobre a comunidade, focando-se numa jovem adolescente.
Listen e A Metamorfose dos Pássaros são filmes sobre famílias e aquilo que as mantém unidas, desde as condições materiais e económicas que as envolvem, à força dos laços entre gerações. Dos filmes de realizadoras já aqui elencadas, muitos outros contam histórias de mães e filhas, da experiência de cuidar de alguém, e das dificuldades em conciliar essa tarefa com o trabalho remunerado. Aparelho Voador a Baixa Altitude (Solveig Nordlund, 2002), Colo (Teresa Villaverde, 2017) e Tempo Comum (Susana Nobre, 2018) são apenas mais alguns exemplos.
Estes temas são abordados com mais frequência por mulheres do que por homens no cinema português. É também nas formas de abordar estes e outros temas que muitas realizadoras se têm vindo a destacar. A utilização e a manipulação de imagens de arquivo, por exemplo, tem sido executada de forma particularmente inovadora no trabalho de Margarida Cardoso e Susana de Sousa Dias. Elas são em grande medida responsáveis por uma leitura mais crítica e atual do passado colonial português.
A ligação à natureza, que emerge dos géneros etnográfico e documental em que muitas destas realizadoras começaram por trabalhar, também tem sido uma constante do cinema português realizado por mulheres, de Máscaras a Ama-San (Cláudia Varejão, 2016).
Quotas, majorações, e outras medidas possíveis
Ao contrário do que acontece noutros países europeus, não há, em Portugal, quotas nos apoios à produção ou divulgação de filmes escritos ou realizados por mulheres. O concurso de apoio à Escrita e Desenvolvimento do ICA prevê uma majoração de 10% do apoio a atribuir, quando se verifique mais de 50% de autoria por mulheres.
Os festivais Olhares do Mediterrâneo e Porto Femme — os únicos dois eventos dedicados ao cinema realizado por mulheres — marcam, duas vezes por ano, o tema na agenda pública.
Em Espanha, os filmes escritos ou realizados por mulheres são considerados “obras difíceis” de financiar e divulgar — como já o eram as curtas-metragens e as primeiras obras, independentemente do género dos autores. Assim, são financiadas a 75% do custo total as obras exclusivamente realizadas por mulheres, enquanto outras obras recebem apenas 60% de apoio.
A European Women’s Audiovisual Network, fundada em 2013, lista várias outras medidas a aplicar nas diferentes áreas do setor — da formação ao desenvolvimento, da produção à distribuição e exibição.
A diversidade e a riqueza do trabalho das realizadoras portuguesas justificam que se tomem medidas mais específicas em Portugal.
O que a investigação nesta área tem sublinhado é que, apesar de alguma resistência histórica ao tema, e do aparente desinteresse de indivíduos e instituições, o género é uma categoria relevante — quer para se compreender o modo como continuam a existir discriminações na programação, financiamento, prémios e crítica de cinema, quer para se compreender as temáticas e abordagem de muitas mulheres realizadoras.
O cinema das realizadoras portuguesas tem trazido temas menos abordados e novas formas de os ler e representar, através de técnicas cinematográficas originais. Vale, portanto, a pena identificá-lo, debatê-lo e apoiá-lo enquanto tal.