Nudes: não é pornografia, não é (sempre) por vingança

Comecemos pelo princípio: é preciso reconhecer a Violência Sexual com Base em Imagens e abandonar a designação “pornografia de vingança”. Porque as palavras importam, e a violência contra as mulheres também se alimenta de eufemismos.

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A sociedade digital introduz novos e colossais desafios quanto à violência sexual: as tecnologias digitais acarretam novos meios e mecanismos de perpetração da violência sexual, ao mesmo tempo que desafiam as respostas sociojurídicas convencionais. O conceito amplo de “violência sexual tecnologicamente facilitada” abarca múltiplas manifestações da violência perpetrada através de, ou com recurso a, novas tecnologias. Entre elas, a Violência Sexual com Base em Imagens (VSBI), comummente designada “pornografia de vingança”, refere-se à criação ou distribuição não consentida de imagens de teor sexual, e abarca expressões como o upskirting e a extorsão sexual, que vão para além do caso típico/estereotipado da divulgação de imagens e vídeos íntimos por ex-parceiros. O impacto da VSBI é, tantas vezes, letal – recordemos o caso próximo, na vizinha Espanha, de Verónica Rubio, mulher de 32 anos que cometeu suicídio na sequência de um vídeo íntimo partilhado por colegas da empresa, arruinando-lhe a vida pessoal, profissional e familiar.

Em Portugal, a atenção mediática em torno da VSBI é, felizmente, crescente. Nos últimos meses, vários conteúdos mediáticos abordaram o problema, as suas causas e implicações, trazendo à luz testemunhos corajosos de quem sofreu, na primeira pessoa, esta forma de violência. À visibilidade mediática soma-se o crescente reconhecimento político: a deputada Cristina Rodrigues deu entrada de um projecto de lei que autonomiza o crime, e circula também uma petição que propõe a sua tipificação como crime público. Despontam iniciativas e movimentos que alertam e sensibilizam para o problema.

Neste contexto, é fundamental o (re)conhecimento rigoroso da VSBI. Várias autoras têm alertado para os riscos da designação “pornografia de vingança”, sublinhando a sua designação errónea e os perigos de minimização que acarreta. Afinal, a linguagem importa, e o termo “pornografia de vingança” encerra vários equívocos. Primeiramente, a partilha e distribuição não consentidas de imagens íntimas não é sempre motivada por vingança, podendo ter outras motivações (como o exercício de poder “recreativo” entre pares masculinos ou a obtenção de lucro). A referência à pornografia, popularizada como “entretenimento adulto”, induz também um eufemismo face à violência sexualizada, o que potencialmente compromete ou aligeira a censura social sobre a mesma, remetendo para o universo da pornografia. (Ainda que tanto haja a dizer, e tenha já sido dito, sobre o lugar da pornografia no contínuo da violência contra as mulheres, a pornografia é integrada na cultura popular – quando não celebrada – como fantasia inócua ou expressão legítima de liberdade sexual).

A produção académica em torno da Violência Sexual com Base em Imagens permite-nos, com segurança, enquadrar a VSBI num contexto mais lato de violência contra as mulheres. A VSBI acrescenta-se às demais formas de violência sexual, partilhando o seu carácter “genderizado” e florescendo no mesmo solo sexista que a normaliza. Não apenas atinge desproporcionalmente as mulheres, como é “genderizada” nas suas dinâmicas e manifestações, reproduzindo as velhas lógicas de masculinidade dominante, a objectificação das mulheres e o duplo padrão sexual ainda vigente.

Disso mesmo dão conta os testemunhos corajosos das vítimas/sobreviventes, no contexto de uma reportagem recente, onde uma jovem mulher alude à forma como as mulheres são “tratadas como carne num talho” e à profunda culpabilização das vítimas (afinal, é dito que “elas põem-se a jeito”). Pelo contrário, os testemunhos apontam como o elemento masculino, mesmo quando presente nos vídeos, é poupado ao voyeurismo, à exploração e culpabilização: “ninguém quis saber quem é que ele era”, relatava uma jovem mulher de 18 anos, contrastando o julgamento social de que fora alvo com a indiferença para com o seu parceiro. As velhas violências contra as mulheres, em novos palcos e plataformas.

Há, contudo, novas dinâmicas e desafios impostos pelo contexto digital. O digital permite a propagação das imagens a uma nova escala e apresenta uma potencial perenidade no online, induzindo um sentimento de violência perpétua e inescapável. Potencia, também, o anonimato dos perpetradores, alavancando as interrogações sobre a responsabilidade de quem participa na violência, mesmo que como “observador”. A VSBI impõe novos desafios – éticos, sociais e jurídicos – pelos seus contornos específicos. Estes novos tipos de violência evidenciam a fluidez das categorias online/offline, e expõem as fragilidades das molduras penais de matriz fisicalista, que pressupõe a agressão física e o contacto corpo a corpo. Importa reconhecer que é possível violar a autonomia e liberdade sexual de uma pessoa sem qualquer contacto corporal, causando-lhe danos e sequelas como medo, insegurança e isolamento, impactando a sua saúde mental e integração social e profissional.

Em Portugal, os dados sobre a Violência Sexual Baseada em Imagens, assim como o esforço preventivo e os mecanismos de intervenção, são ainda incipientes. Há muito – quase tudo – por fazer, no que toca aos serviços de apoio às vítimas/sobreviventes, passando pela responsabilização das empresas tecnológicas que tantas vezes se demitem de intervenção nas suas próprias plataformas. Os esforços de sensibilização e prevenção estão por cumprir, sobretudo numa lógica emancipadora que não reproduza a responsabilização das vítimas e que não coloque nas jovens mulheres – mais uma vez – o ónus da prevenção da violência machista. Comecemos pelo princípio: reconhecer a VSBI pelo que é – uma forma de violência sexual, inscrita num contínuo de violência contra as mulheres. Porque as palavras importam, e a violência contra as mulheres também se alimenta de eufemismos.

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