Sangue fresco
Há um erro original a corrigir, que vem do tempo em que nos deixaram morrer. É mais do que altura de recusar liminarmente a estigmatização do “grupo” – e de recusar que seja, para mais, a Saúde a contribuir para essa estigmatização.
Desde que me conheço – ou seja, desde que me conheço enquanto homem gay – que não sei se posso dar sangue.
As regras têm mudado de forma mais ou menos sistemática, para tentar corrigir um erro do passado, do tempo da outra pandemia em que não importava muito quem morria.
Lembram-se dessa? Havia “grupos de risco”, como agora – mas, ao contrário de agora, os grupos não tinham a ver com uma especial vulnerabilidade das pessoas desses grupos. É que nenhuma pessoa, por ser gay, teria mais propensão para ficar infetada pelo VIH. Pois, a questão sempre foi de comportamentos, mas na altura o esforço de controlar a propagação do vírus e até de identificar as formas de transmissão foi particularmente limitado, porque as vidas de quem morria afinal valiam menos. Valiam menos para quem, na altura, detinha o poder – e talvez valessem menos para as pessoas em geral?
Na altura, deixaram-nos morrer. Assim, em grandes números. E lembramo-nos bem, ficou na nossa memória coletiva – mas não nos ficou no sangue.
Ainda assim, foi com base nessa mesma lógica de “grupo” que as exclusões na doação de sangue foram sendo estabelecidas. No fundo, definiram o nosso sangue – o sangue dos que sobreviveram – como sujo. Perigoso, infeto.
Continuaram a perpetuar o estigma nos nossos corpos, os corpos do “grupo”, biologizando a discriminação.
Claro que há toda uma herança de literatura científica que parte de um erro e que, de citação em citação, o perpetua. Sempre um grupo, independentemente dos comportamentos: o “grupo sujo”. Sempre as estatísticas sobre “o grupo” como se não houvesse tantos grupos que se poderia identificar dentro do “grupo” e como se não houvesse tantos outros “grupos” que poderiam ser considerados e constituídos com base em comportamentos que não são exclusivos do “grupo”.
Frisemos o óbvio: é claro que é fundamental garantir a qualidade do sangue recolhido. Mas frisemos o que nem sempre parece óbvio: é também por isso que os critérios de seleção na recolha devem ser mais incisivos.
Sabemos que o plasma recolhido é evidentemente testado e também sabemos que pode sempre haver falsos negativos e que há períodos de janela a ter em conta. Sabemos que há inevitavelmente um risco residual (sempre associado ao processo de recolha) que tem que estar dentro de parâmetros definidos de acordo com normas internacionais. Sabemos que é por isso que é importante um questionário de triagem que minimize esse risco residual. Mas também sabemos que vários países – nomeadamente da União Europeia – retiraram do processo de triagem a questão sobre se, “sendo homem, teve sexo com outro homem”, permitindo assim o enfoque apenas em comportamentos específicos. Também em Portugal, depois de várias revisões da norma da DGS, pelo menos teoricamente esta questão teria desaparecido em 2016.
E vale a pena explicar que a questão era e é profundamente ineficaz. Desde logo, porque opta por não especificar comportamentos mas também porque o objetivo de identificar pessoas do “grupo” falha. Se se perceber alguma coisa sobre os processos de construção identitária de homens gays e bissexuais, sabe-se que é particularmente difícil ganhar a confiança para afirmar essa identidade – tão associada a insultos – face a outras pessoas. E sabemos também que quem terá mais dificuldade em construir-se é também quem tipicamente terá mais comportamentos de risco. Com uma pergunta destas colocada num contexto de triagem, a propensão para dizer a verdade será tanto maior quanto mais segura for a pessoa que responde – e é essa segurança que também está associada a menos comportamentos de risco.
Ou seja: uma questão como esta acaba por afastar as pessoas cujo sangue se pretenderia afinal recolher e por poder permitir doações que se pretende evitar. E é, para além disso, uma questão que deseduca em termos de saúde, vincando outra vez uma lógica de grupo por oposição a comportamentos. E é, ainda por cima, uma questão que é mais uma agressão a pessoas que precisam de conseguir resistir psicologicamente a uma história de agressões repetidas: é uma questão que, em si mesmo, faz mal à saúde.
Há um erro original a corrigir, que vem do tempo em que nos deixaram morrer. É mais do que altura de recusar liminarmente a estigmatização do “grupo” – e de recusar que seja, para mais, a Saúde a contribuir para essa estigmatização.
O que falta fazer então? Clarificar.
Acompanho há quase duas décadas a saga das normas, vistas e revistas, e dos questionários e dos procedimentos e dos grupos de trabalho e dos estudos. E o que também já se tornou evidente é que os procedimentos de recolha nunca foram uniformes: quando a norma e o questionário incluíam teoricamente a questão, ela não surgia em vários pontos de recolha; quando deixou de incluir, ela manteve-se em vários pontos de recolha. Ou seja, nunca houve um momento em que eu tivesse a garantia de que a questão não me seria colocada.
É por isso que é urgente garantir o compromisso, a partir do Governo, de uma uniformização de procedimentos em todos os pontos de recolha de sangue – para acabar com o lastro de estigma do passado e para que haja também cada vez mais garantias de qualidade no processo de recolha.
Desde que me conheço que nunca dei sangue, por não querer correr o risco de ser estigmatizado num processo de triagem. Não, não vou correr esse risco.
Desde que me conheço que não sei se posso dar sangue. De uma vez por todas, gostava de saber.
Professor universitário e activista
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico