O telenormal não é normal

Haverá justiça social na digitalização do mundo? Não, e é precisamente por isso que não podemos correr o risco de considerar o telenormal como normal, porque não o é.

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Paulo Pimenta

Já passou praticamente um ano desde que uma realidade que nos é estranha tomou conta do quotidiano mundial. Não pedimos, não ansiamos e, por certo, não contávamos com a nossa vida tal como ela é no presente momento, ou seja, pausada e entrincheirada numa sala em frente ao ecrã. Podemos falar de muitos ecrãs que, neste contexto pandémico, se tornaram ainda mais familiares, seja a televisão, o tablet, o telemóvel ou o computador. Fazem parte da nossa vida há um par de anos e nunca nos cansamos de gabar as suas infinitas possibilidades, um novo mundo que se desenhou através de luminosos pontos que nos permitem ligar o mundo e entrelaçar a vida real com a digital. Não tão certos, porém, de qual a realidade em que nos encontramos no panorama actual.

Fomos habituados, desde a explosão digital, a olhar para o desenvolvimento tecnológico, particularmente no que diz respeito à tecnologia doméstica e social, como sendo as redes sociais, as diferentes formas de interacção por via digital, sem qualquer desconfiança ou alarme. No que tange os alertas em relação às tecnologias, a opinião generalizada centra-se nas críticas às redes sociais, ao Facebook ou ao Instagram, tecendo considerações sobre os perigos da sua utilização excessiva e os efeitos nefastos que esta utilização desenfreada a que fomos acometidos poderão ter nas relações pessoais, em particular das novas gerações. São críticas justas e com a pertinência necessária para uma reflexão aprofundada acerca destes contextos sociais digitais.

Contudo, com o prolongar da pandemia foram surgindo inúmeras soluções para que as empresas não parassem, para que o trabalho pudesse continuar a ser prestado, para que as universidades prosseguissem com as suas actividades, e por aí fora. O recurso em massa ao teletrabalho, por exemplo, não raras vezes imposto por decreto, promete deixar lastro e perfilar-se como um recurso natural para a prestação laboral num contexto de normalidade, ou seja, mesmo após a pandemia iremos ver, por certo, a sedimentação de formas digitais de trabalho, mas também de aprendizagem. As reuniões por Zoom, as aulas em diferido, avaliações online nas universidades, o trabalho em casa e com menos regulação pode ser, lamentavelmente o fado de muitos, da geração mais digitalmente competente.

Ficámos surpresos e estarrecidos perante todas as soluções digitais que nos permitiram continuar a trabalhar durante estes tempos conturbados, mas, porventura, pela urgência do momento, perdemos pouco tempo a pensar se é realmente o que desejamos para a generalidade, ou até mesmo a maioria, da nossa vida. Este telenormal não é normal porque retira das empresas os seus trabalhadores, lançando-os para a sua casa-escritório que para tudo serve, trabalhar, estudar, relaxar, brincar, fazer desporto ou dormir. A generalização do teletrabalho, por exemplo, é deitar ao confinamento, mesmo não havendo pandemia, milhões de pessoas, com as graves consequências que inevitavelmente terão lugar.

Tomemos como exemplo os direitos colectivos dos trabalhadores e a necessidade da sua interacção para que esses direitos possam ser uma realidade. Que futuro haverá para a greve numa sociedade maioritariamente digitalizada? As relações pessoais nos locais de trabalho são o motor para o desenvolvimento da consciência de que se é parte de um todo e que esse todo se pode organizar-se e lutar por uma vida melhor. Será possível considerar uma sociedade onde se recorre massivamente ao teletrabalho, arcando os trabalhadores com os custos da electricidade e internet, com o seu tempo de trabalho desregulado e com a sua vida precarizada cronicamente, uma sociedade mais justa?

Haverá justiça social na digitalização do mundo? Não, e é precisamente por isso que não podemos correr o risco de considerar o telenormal como normal, porque não o é.

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