O fim do papel
Com o fim do papel, virá também o fim das funções desempenhadas pela imprensa escrita na socialização de uma parte significativa da população. Mas é mais realista pensarmos que estamos a meio de uma revolução silenciosa, que não vai mudar tudo.
Há mais de dez anos que os jornais estão em crise. A sua principal fonte de receita – a publicidade – está a secar. As tiragens e vendas em papel equivalem hoje a menos de metade do que foram há uma década. Mesmo antes da covid-19 e da brutal crise económica que o combate à pandemia está a acarretar, os jornais já sentiam dificuldades em monetizar efetivamente o seu conteúdo digital. Mas o que está para vir pode ser ainda pior. Poucos duvidam que o futuro pós-pandemia vai ser um futuro cada vez mais digital, um futuro em que ler um jornal em papel poderá ter os dias contados. Serão as estratégias financeiras dos jornais portugueses em responder à digitalização crescente da economia e sociedade viáveis a médio ou longo-prazo? E, não menos importante para todos nós, quais as consequências sociais de tais estratégias?
Pensemos no acesso do público às notícias. Num mundo crescentemente digital, as paywalls vão excluir os não assinantes. Depois, há que não esquecer que ler uma notícia em papel ou num telemóvel não é igual. A relação entre o conteúdo da mensagem e a forma como esta é reproduzida é uma relação ativa, complexa e com implicações profundas para o entendimento que fazemos dos conteúdos noticiosos. Ler em papel produz uma relação mais demorada, aturada e reflexiva com o conteúdo da mensagem. O que sucede, então, a uma sociedade em que não se lê tanto em papel como no passado? Desde logo, quem não lê? Os mais jovens: os assinantes são, por regra, mais velhos do que os não assinantes. Onde vão, então, os mais jovens buscar informação? Para além da televisão, às redes sociais. Ora, num tempo de fake news, a capacidade de descodificar mensagens num ecrã de televisão ou numa página da net é crucial. Uma capacidade cada vez mais rara, e, por isso mesmo, mais valiosa. Resultado: uma sociedade mais dividida entre aqueles que conseguem distinguir o trigo do joio, e todos os outros que têm dificuldade em compreender o que lhes está a acontecer. Mas nem por isso se sentem menos injustiçados, bem pelo contrário. Sentimentos de injustiça que, se não forem canalizados pelo sistema democrático e transformados em influência política, redundam ou em abstenção maciça ou voto de protesto.
Outra consequência com impacto na sociedade são as decisões editoriais. Por exemplo: a seleção de públicos-alvo, os tópicos a desenvolver, o tom de voz a utilizar ou a que fontes recorrer. Com a pandemia e a crise, o espaço disponível para tomar estas decisões diminuiu. Ficou mais difícil criticar um governo que paga milhões em publicidade institucional sem a qual muitos jornais teriam fechado. Mas a que custo? Quantas notícias não foram publicadas por receio de desagradar a quem paga? E por quanto tempo? Será isto o “novo normal” da imprensa escrita em Portugal?
Por fim, há o próprio futuro da profissão jornalística. O grande jornalismo de investigação, que permitiu que alguns acompanhassem de perto a carreira política de José Sócrates, parece ser cada vez mais uma coisa do passado. O futuro é precário, feito de notícias prêt-à-porter (via Reuters ou AP), para serem lidas em segundos, antes de se abrir o último post do influencer preferido. Um futuro inexoravelmente digital. Mas será que esse futuro já chegou?
Na realidade, a transformação digital da indústria jornalística não avançou ainda o suficiente para tornar este novíssimo modelo financeiramente sustentável, pelo menos a uma escala nacional. Por um lado, entre 2002 e 2017, a circulação impressa paga caiu para metade: de mais de 800 mil para menos de 400 mil exemplares diários. Por outro lado, o digital está longe de ser uma alternativa viável. Em 2017, a circulação digital paga não chegava a 70 mil assinaturas em todo o mercado relevante. É certo que há casos e casos. O PÚBLICO, em 2018, tinha uma circulação digital paga a rondar as 12 mil assinaturas contra cerca de 17 mil jornais vendidos em papel por dia. Mas vale a pena comparar o que se passa no nosso país com o que acontece no resto da Europa. Apenas 9% dos portugueses se mostra disposto a pagar por notícias online, abaixo da média europeia (12%), e muito longe do que se passa em países como a Noruega (30%). O contraste com o caso norueguês é revelador. Aproximadamente setenta por cento da receita da maioria dos jornais tradicionais noruegueses provém de seus produtos impressos, e a idade média de tais assinantes é de cerca de setenta anos. A verdade é que, muito embora os noruegueses tenham a maior disposição do mundo em pagar por notícias online, relativamente poucos o fazem, e aqueles que assinam principalmente assinam um jornal. Perante isto, o que dizer de Portugal?
É possível que pequenos grupos económicos consigam sobreviver à crise. Mas apenas os grandes grupos de língua inglesa, com um modelo de negócios escalável, como The Guardian ou The New York Times, vão conseguir prosperar. É o cenário do “vencedor(es)-leva-tudo”. Tudo indica que o número atual de jornalistas em Portugal diminuirá drasticamente no decorrer da próxima década, a menos que a indústria jornalística e a política de media mudem rapidamente e de forma radical.
Mas será isto um cenário realista? Num ecossistema marcado pela ascensão das grandes plataformas de distribuição de conteúdos (nomeadamente, Google e Facebook), a queda continuada quer do número de jornais e revistas, quer das respetivas tiragens e vendas, parece claro que estamos perante o fim do papel. E com o fim do papel, virá também o fim das funções desempenhadas pela imprensa escrita na socialização de uma parte significativa da população. Mas, como em tantas outras ocasiões, é mais realista pensarmos que estamos a meio de uma revolução silenciosa. Uma revolução que irá acabar por mudar muita coisa. Mas que não vai mudar tudo. O papel não vai desaparecer de um dia para o outro. Vai provavelmente ser usado em novos formatos e com outros fins. E com o digital, como exemplos como o Politico bem mostram, abrem-se novas modalidades de produção e divulgação de notícias – de acesso aberto e de grande qualidade. Para quando uma edição portuguesa do Politico?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico