O novo ciclo euro-americano e a abertura ao mundo
Este início do mandato de Biden é uma oportunidade imperdível para todos quantos acreditam no valor da aliança euro-americana para a ordem mundial. Mas como, da perspetiva europeia, aproveitá-la?
“A América está de volta”
Os discursos de Joe Biden na cerimónia de investidura, no Departamento de Estado e na Conferência de Munique veicularam uma mudança profunda na política externa dos Estados Unidos. A participação do secretário de Estado Anthony Blinken no Conselho dos Negócios Estrangeiros da União Europeia, na passada segunda-feira, confirmou tal mudança.
Seria errado interpretá-la como um simples retorno ao tempo de Barack Obama, em que Biden e Blinken já haviam tido elevadas responsabilidades. A política de que fala o atual Presidente está nos antípodas da de Trump, mas também é nova por comparação com a época anterior a 2017.
As primeiras palavras de Biden exprimem três teses fundamentais. Reclamação de liderança internacional, bem escudada normativamente (“pela força do exemplo”), com recusa liminar da prossecução da anterior linha isolacionista e “transacional”. Opção multilateralista, querendo isso dizer, ao mesmo tempo, adesão às grandes agendas globais e valorização das organizações multilaterais e das formas de entendimento e concertação que estão no seu âmago. Abandono, pois, da pulsão unilateralista e da lógica puramente confrontacional. E designação da Europa (a União Europeia e o Reino Unido) como os aliados mais próximos para essa liderança pelo exemplo, para essas agendas globais e para esse reforço do multilateralismo. Em vez, portanto, das ambiguidades face à Rússia e das animosidades face a Bruxelas, Berlim ou Paris (tão cultivadas por Trump), uma clara ênfase na comunidade transatlântica e na aliança política e de segurança que a consubstancia.
As primeiras decisões foram conformes: retorno ao Acordo de Paris, travagem da saída da Organização Mundial de Saúde, fim do bloqueio à Organização Mundial do Comércio, participação no Conselho dos Direitos Humanos, múltiplas interações com os aliados europeus, escolhas fortes para as Nações Unidas.
Este início do mandato de Biden é uma oportunidade imperdível para todos quantos acreditam no valor da aliança euro-americana para a ordem mundial. Mas como, da perspetiva europeia, aproveitá-la?
Um novo encontro
A Administração Biden tem uma tarefa hercúlea no plano interno, sarando feridas, respondendo a desequilíbrios e fraturas sociais, reativando o sentido de pertença e unidade nacional. Isso não a impediu de apresentar uma ação externa que sublinha dois eixos principais, ambos emblemáticos: a democracia e o clima. E eis uma boa maneira de abordar o reencontro entre a Europa e os Estados Unidos.
Ao nomear John Kerry como enviado para o clima e ao fazer do regresso ao Acordo de Paris a sua primeiríssima decisão, Biden enunciou lapidarmente o desafio existencial da sustentabilidade (para a sobrevivência do planeta e da Humanidade), a urgência de arrepiar caminho e o papel do conhecimento e da cooperação internacional na procura e aplicação de soluções. Estabeleceu também o campo em que é indispensável o diálogo e, desejavelmente, a colaboração com outros grandes atores, incluindo a China, sem cuja participação a agenda do clima ficaria incompleta, mas também a Índia, o Brasil e outros grandes países. Do mesmo modo que, noutra vertente da sustentabilidade, é imperioso concertar com a Rússia, como Biden já fez, formas de controlo do armamento.
Não é menos relevante a forma como se está a redefinir em Washington a temática da democracia. Por um lado, Biden e Blinken são inequívocos, ao articularem as dimensões interna e externa: para eles, é tão importante que europeus e americanos batalhem em defesa do paradigma democrático nas relações com os outros como no enfrentamento das derivas antidemocráticas que existem ou germinam nas suas próprias instituições e espaços públicos. Por outro lado, a afinidade entre as democracias define o eixo de aproximação e diferenciação sistémica na ordem internacional. Nos termos europeus, é no critério institucional (no Estado de direito, no respeito pelas liberdades fundamentais, etc.) que Europa e China são mais distintivamente rivais, ou que o antagonismo com a Rússia das campanhas de desinformação e das interferências eleitorais é mais evidente. A contraposição entre modelos democráticos e autoritários de organização socioeconómica e cívica é que estrutura a dinâmica de ganhos ou perdas de influência do “Ocidente político” sobre várias dezenas de países, em todos os continentes, hoje confrontados com esse tipo de escolhas na definição dos seus destinos geopolíticos.
A valorização da diplomacia pelo clima e a sustentabilidade e da diplomacia pela paz e os direitos humanos é uma área de forte convergência entre a Europa e os Estados Unidos. Mas não a única: no posicionamento geoestratégico, no modelo económico, na cultura e no modo de vida, são muitos os traços que unem os dois lados do Atlântico. Pertencem ao mesmo “bloco” e dessa pertença retiram um compromisso de solidariedade recíproca que a NATO exprime cabalmente, no seu plano.
Ninguém pode ignorar a tensão geopolítica que está opondo Estados Unidos e Rússia, nem a que envolve Estados Unidos e China. A Europa não é uma terceira parte, distanciada ou neutral. Quando se diz, na UE (como eu digo), que esta não é e não deve ser um parceiro menor do aliado norte-americano, o que se quer dizer é que lhe deve ser igual, em direitos e responsabilidades. Que deve ser parte nos processos de decisão, e não mera seguidora das decisões alheias. Que tem um direito de inventário, em função dos seus valores e interesses, o qual precisa de exercer, a bem da solidez e da boa direção estratégica da própria comunidade transatlântica. Foi, aliás, esse direito de inventário que a Europa aplicou várias vezes face à Administração Trump; se não o tivesse feito, teriam sido mais negativos os efeitos desta para a influência do paradigma democrático e liberal na ordem internacional.
Seria uma ilusão presumir a coincidência total dos valores, dos interesses (e das paixões) europeias e americanas, mesmo com Biden e Harris em Washington. Focando-me apenas na economia, as tensões comerciais não desaparecem por magia, como não se eclipsam as profundas divergências quanto à taxação das empresas tecnológicas, aos regimes de sanções ou à economia dos bens culturais. O “Comprar americano” de Biden, assim como outras linhas de continuidade entre as duas Administrações, precisa de ser levado a sério. Uma coisa, porém, é discutir divergências com parceiros, procurando compromissos mutuamente aceitáveis, outra bem diferente é abordá-las em jogos de soma nula.
Depois dos gestos de reaproximação protagonizados por Washington, a hora é de movimentos equivalentes das capitais europeias. As palavras contam, e muito: já podemos ser mais rigorosos no uso de fórmulas que despertam reticências na Casa Branca e no Capitólio, como “autonomia estratégica” ou “Exército europeu”. Mas as ações contam mais. À Europa também cabe reinvestir na NATO e na complementaridade entre a UE e a NATO; cabe tomar medidas efetivas de diminuição da sua dependência energética face à Rússia; cabe verificar com cuidado e tempo os termos do acordo de princípio com a China em matéria de investimento. E não será por acaso que a posição portuguesa vai nesta direção: advocacia do reforço da defesa europeia como pilar europeu da defesa transatlântica; promoção de mais interconexões energéticas e combate ao isolamento da Península Ibérica, como instrumentos essenciais para a diversificação das fontes de abastecimento e o aumento da segurança energética do Velho Continente; compromisso, enquanto presidência do Conselho, para um trabalho sereno sobre o princípio de acordo com a China.
O mundo a ver-nos
Durante o mandato do Presidente Trump, não faltaram as vozes no espaço público que sustentavam a inevitabilidade de a Europa acompanhar (aí, sim, como parceiro menor) a nova direção antagonística e transacional da política externa americana. Estavam enganadas, como se viu: a autonomia de que deu então mostras a União Europeia foi instrumental não só para a defesa dos seus interesses como, sobretudo, para a preservação da dinâmica multilateralista (e para a subsequente inflexão de Washington).
Também se enganarão agora aqueles que da presente convergência quase absoluta dos dois lados do Atlântico Norte retirem uma ideia de auto-suficiência, numa espécie de regresso ao “ocidentalo-centrismo”, como se esta aliança se bastasse a si própria e tivesse um direito natural à hegemonia universal. Na minha opinião, quem assim pensa nem sequer compreende os novos ventos que sopram da América.
Firmeza não significa incomunicação. Se devemos esperar, sem dúvida, mais rigor dos Estados Unidos face à Rússia, designadamente quanto ao revisionismo estratégico, à desinformação e às guerras híbridas, a interação com Moscovo não deixa de ser necessária, designadamente para as questões regionais, a luta contra o terrorismo, o controlo do armamento e a não proliferação nuclear. Se devemos contar com maior robustez na reação às tentativas da China de alterar o statu quo no Extremo Oriente, ou ao uso político das tecnologias digitais, ou à perseguição de minorias étnicas ou religiosas, o diálogo com Pequim continuará a ser incontornável para as questões geoeconómicas e a ação climática. Trump exigia à Europa que o seguisse apenas nas dimensões confrontacionais. Biden pede à Europa que coopere em todas as dimensões deste complexo relacionamento geopolítico. Saiba a Europa estar à altura do pedido.
Mas não é esse o único papel da Europa numa comunidade atlântica renovada. Ou, pelo menos, não é esse o único papel dos países europeus que, como Portugal, são ao mesmo tempo europeus e abertos ao mundo – à diversidade do mundo. Primeiro, eles sabem melhor do que ninguém que a comunidade atlântica de que precisamos não se reduz ao Norte do Atlântico, mas deve alargar-se ao Sul. Para o que é incontornável a relação muito própria de (parte da) Europa com a América Latina. Segundo, a interação euro-africana é absolutamente essencial ao equilíbrio político e social do mundo multipolar. Terceiro, a Europa tem uma capacidade específica de lidar com o Médio Oriente, a Ásia Central, o Sudeste Asiático, a Índia, que pode ser preciosa para os Estados Unidos. Quarto, e sobretudo, as plataformas e as agendas multilaterais sofreriam irremediavelmente sem a liderança normativa da União Europeia.
Celebremos, pois, como europeus e como portugueses, o novo ciclo euro-americano. Mas, até como homenagem ao tão promissor começo da Administração Biden, celebremo-lo corretamente. Não como um novo fechamento do Ocidente sobre si próprio, mas como uma abertura coordenada desses dois grandes atores globais, a Europa e os Estados Unidos, ao vasto e diversificado mundo que nos coube em sorte e cuja ordem, para ser equilibrada e baseada em regras, necessita tanto de uma Europa como de uma América do Norte em boa relação consigo e com os outros.