Guerra Colonial: o julgamento que não houve
Há 45 anos, um livro sobre os massacres de 1972, pelas tropas portuguesas, em Wiriamu e outras localidades na região moçambicana de Tete, deu origem a um processo que, revelando os incómodos que os fantasmas da Guerra Colonial ainda provocavam no seio da hierarquia militar pós-revolucionária, redundou num não-julgamento: o desses mesmos fantasmas.
No ano em que se cumprem seis décadas do início do conflito, a recente morte do tenente-coronel Marcelino da Mata, “o mais condecorado militar do exército português”, e as acesas discussões que os seus feitos militares despertaram nos dias seguintes vieram recordar duas coisas elementares sobre a Guerra Colonial: que, num sentido de memória colectiva (e não apenas historiográfico), ela não terminou ainda, e que muito (se não tudo) nela está empapado em paradoxo. Negro, guineense, o militar lutou pelo exército português contra guineenses negros que lutaram por uma Guiné independente do poder colonial, a “nação africana forjada na luta” de Amílcar Cabral. A uma escala pessoal, esse paradoxo ecoou essoutro mais vasto, o de um conflito de treze anos, em três frentes africanas, levado a cabo por um pobre país na periferia europeia, quando as maiores potências coloniais tinham já concedido independência às suas possessões ultramarinas. Mas foi quando o campo de batalha passou das terras de África para a gestão política da memória desse conflito, já depois do 25 de Abril de 1974, e mesmo do 25 de Novembro de 1975, que se produziu um paradoxo ainda mais espantoso, revelador da disputa ideológica entre os mentores dos dois pronunciamentos militares e, sobretudo, do incómodo de alguns fantasmas dessa gesta africana no arranque da III República. No centro, um livro.
Apesar da abolição dos serviços de censura estatal pela Junta de Salvação Nacional em Maio de 1974, e de ser na imprensa periódica que se passavam a concentrar receios de “novas censuras”, alguma fricção entre os vários agentes políticos no ano e meio posterior iria criar impedimentos de diversa ordem a uma ou outra edição de livros (de que o caso Radiografia Militar de Manuel Barão da Cunha, em 1975, é paradigmático). Nada, porém, se aproximaria do que sucedeu a uma edição da Ulmeiro de Maio de 1976, já em plena “normalização democrática”, pouco depois da entrada em vigor da nova Constituição da República, a dois meses da tomada de posse de Mário Soares como primeiro-ministro do I Governo Constitucional e de Ramalho Eanes como primeiro Presidente da República eleito após a Revolução. Massacres na Guerra Colonial – Tete: um exemplo, da autoria do jornalista José Amaro, era uma escorreita edição de 20 documentos relativos aos massacres de Dezembro de 1972 em Moçambique, transcritos e comentados, aos quais se juntavam os relatórios dos padres que primeiro deles souberam. Se essa cuidada reunião documental, cronologicamente organizada, era inédita por cá, nada ali era verdadeiramente desconhecido além-fronteiras: fora o próprio Mário Soares, três anos antes, em Londres e junto ao padre católico Adrian Hastings, que informara em conferência de imprensa acerca do que se sabia dos massacres da “operação Marosca”, de modo a comprometer a visita de Marcelo Caetano à capital inglesa. Na introdução, Amaro aponta a necessidade de se procurar responsáveis (“o tipo que mete uma arma na boca de uma criança rebentando-a com um tiro à queima roupa – tem que responder por ele”), mas reconhece que “são óbvios os indícios de que não irão ser julgados os assassinos de Tete”, como o da então recente libertação de Kaúlza de Arriaga, comandante das forças terrestres em Moçambique até 1974. Se, um ano antes, houvera esperanças de um julgamento, o 25 de Novembro parecia ter mudado os ares. Ora é precisamente de um dos heróis dessa data, o coronel Jaime Neves, uma das duas epígrafes do livro: “nunca houve guerra sem mortandade! O mal é da guerra!... E de mais ninguém!” (a outra é uma descrição atroz da execução de uma criança com um tiro na boca, retirada de um relatório dos padres da missão de S. Pedro).
Foi o diário “otelista” Página Um, em 17 de Setembro, a noticiar o inesperado: o autor e o editor da Ulmeiro, José Ribeiro, eram processados pelo Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), que era o mesmo que dizer que era o Presidente da República a processá-los. Formalmente, a acusação era a de crime segundo o estipulado nas alíneas d) e e) do artigo 66 da Lei de Imprensa (Dec.-Lei 85-C/75): em suma, “violação de segredos militares essenciais à segurança nacional” e divulgação não autorizada de operações militares, com risco da “coesão das forças armadas”. Parecia, e era incrível: Amaro lembrava que o então já PM Mário Soares dera essa informação ao mundo em 1973 e que a divulgação de documentos que denunciassem “os crimes do regime colonial” servia o programa do MFA, ajudando a “redimir o passado”, e o editor avisava para o perigo iminente do regresso à proibição e apreensão de livros. A Opção de Artur Portela Filho partilhava do espanto: não era aquela divulgação “dever moral dos mais altos responsáveis do novo regime”? Eis, portanto, um julgamento político no novo regime, mesmo se levado a cabo pela justiça castrense: ouvidos na Judiciária no final do ano, os arguidos são informados de que o caso passaria para a congénere militar.
É aí, na sede da Polícia Judiciária Militar, a 7 de Dezembro, que entre o juiz de instrução e o editor se trava um diálogo aceso que ilumina o cerne da questão: “a páginas tantas, o juiz pergunta-me: ‘você, com essa preocupação pela verdade, porque é que não ouviu os responsáveis pela Operação Marosca?’ E eu respondi: ‘e você, para ficar com a verdade toda, ressuscite os mortos que é para eu os ouvir também.’”* Esta confusão, em que, para o exército, parecia não ter existido em 1974 um corte entre dois regimes, tinge um outro caso, meses depois: imagens duma encenação de uma das Peças em Um Acto de Sttau Monteiro (que fora preso em 1966 por essa publicação), emitidas pela RTP em 1977, são consideradas pelo EMGFA como “graves ofensas às forças armadas”. Mais uma vez, a memória da guerra colonial em jogo, e nada parecia demover a obstinação do EMGFA em prosseguir a tensa gestão dessa memória: o processo contra o livro da Ulmeiro materializou-se no início de 1978.
Depois, um hiato. O paradoxo, todavia, apenas esperava: caucionado a tempo pelo quase extinto Conselho da Revolução, que despachou nesse sentido, o processo iria a julgamento em Março de 1983 no 5.º Tribunal Militar Territorial de Lisboa. Mas tudo redundou numa solução ex machina: em vez do julgamento, uma amnistia dos arguidos ao abrigo da Lei 74/79, que abrangia “infracções de natureza política”. Ou seja: o processo, cuja “natureza política” fora absconsa sob um manto de formalidades jurídicas, acabaria dissolvendo-se por razões de natureza estritamente política. A decisão desagradou ao editor José Ribeiro: “gostaria que o tribunal tivesse declarado não haver lugar para procedimento criminal. [A amnistia] equivale, na prática, a que não tenhamos sido nem absolvidos, nem condenados.” Será, no Diário de Notícias, Guilherme de Melo a colocar o ponto da questão: “ao deixar-se arrastar pelos seus próprios complexos, o poder militar correu um risco grave: o de, pretendendo levar ao banco dos réus este livro e o que nele se contém, acabar por ser ele próprio o julgado.” Em suma: evitara-se um julgamento à própria guerra colonial.
Quando, em Fevereiro de 1975, Adrian Hastings veio a Portugal, foi-lhe comunicado de modo claro o desconforto que ainda provocava nos altos escalões das forças armadas aquilo que o tornara conhecido para os portugueses: a revelação internacional do massacre de Tete. Em Maio, numa “carta aberta” ao MFA no Times de Londres, escreveu: “as maiores atrocidades [do anterior regime] deram-se em África e o exército esteve profundamente envolvido – tão profundamente que desde Abril de 1974 nunca fostes capazes de, por vós próprios, as investigar.” A sombra que estas palavras acusavam parece nunca se ter dissipado.
*Em conversa gravada a 16.10.2016
(Da responsabilidade de Daniel Melo – CHAM da Nova-FCSH –, está já online a mostra virtual da exposição dedicada aos 50 anos da Ulmeiro, que se pôde visitar em 2019 na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa).