Ainda os brasões da Praça do Império…
A anunciada intenção de recuperar o projecto original de Cottinelli Telmo não tem em consideração o sentido mais completo e complexo da Praça do Império e, mais do que revelar um desejo autêntico de retomar o seu purismo conceptual, constitui uma falácia para mascarar o revisionismo histórico subjacente à decisão de remover os brasões florais.
A utilização da arquitectura e a apropriação do espaço público para transmitir valores, ideologias e concepções de poder é uma realidade que se estende no tempo e que não se circunscreve à nossa geografia.
Entre nós, podemos ver na Batalha um espaço privilegiado de afirmação política e ideológica das primeiras gerações da dinastia de Avis e nos Jerónimos uma forte carga icónica e simbólica do reinado manuelino; encontramos na Praça do Comércio uma expressão do Estado absoluto e topamos com motivações de republicanos e maçons na iniciativa de construção da grandiosa estátua do controverso Marquês de Pombal, para dar alguns exemplos ocorridos em períodos distintos.
Neste sentido, a afirmação ideológica do Estado Novo por recurso à arquitectura e à intervenção no espaço público, ainda que prosseguida de forma particularmente intensa e consistente, não constituiu uma novidade absoluta. Mas, como é sabido, foi nesse contexto que se procedeu à construção da Praça do Império, em Lisboa, tanto no seu conceito original, da autoria de Cottinelli Telmo (1940), como posteriormente com o acrescentamento dos canteiros brasonados, inaugurados a seguir às comemorações henriquinas (1960).
Tal alteração foi, na verdade, introduzida em harmonia estética e simbólica com a praça pré-existente e, sobretudo, com o seu elemento central e dominador – a monumental fonte, cuja concepção se deveu a mestre António Lino e na qual estão expostos os brasões das famílias dos principais construtores da epopeia marítima portuguesa, tal como os percepcionou o regime então vigente.
Os arbustos armoriados, representando os vários distritos de Portugal continental e insular, bem como as antigas províncias ultramarinas, vieram, assim, corporizar o amplo território que, por acção daqueles mesmos protagonistas da expansão portuguesa figurados na fonte, passou a estar unido por uma língua, uma história e uma cultura partilhadas ao longo de cinco séculos.
Não é irrelevante, nesta perspectiva, quer a disposição dos brasões florais em torno da fonte, numa linguagem heráldica visual que a completa, quer a circunstância de a sua sequência não obedecer a qualquer outro critério senão o da ordem alfabética de cada cidade ou província, estando estas misturadas com aquelas, sem qualquer diferença de tratamento ou de hierarquia (vd. Peregrinações Heráldicas Olisiponenses. A Freguesia de Santa Maria de Belém, coordenado por Miguel Metelo de Seixas e por mim, editado em 2005 com o apoio da respectiva junta).
A figuração na Praça do Império desta heráldica institucional de domínio – no caso, municipal e ultramarina – traduz-se, por isso, num interessante (e invulgar, pelo seu suporte vegetal) testemunho de uma concepção de Estado e de uma forma de representação do poder, cujas raízes, por sinal, são anteriores ao Estado Novo, tendo particular expressão no período romântico de Herculano e no movimento municipalista continuado pelos republicanos (a este respeito, vd. a notável tese de doutoramento de Miguel Metelo de Seixas, Heráldica, representação do poder e memória da nação).
Vale a pena dizer que os brasões de diversas cidades e províncias ultramarinas estão patentes em vários armoriais oitocentistas impressos, de que é paradigma a obra As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d’Armas, de Inácio de Vilhena Barbosa, publicada em 1860 pela Typographia do Panorama, na qual se encontram figuradas as armas de Goa, Macau, Angola e Moçambique. Recorde-se, igualmente, que nos actuais paços do concelho, em Lisboa, edificados entre 1867 e 1880, se exibem na sanca do seu salão nobre, a par das armas de várias capitais de distrito, as daquelas mesmas quatro cidades e províncias ultramarinas, o mesmo sucedendo no pedestal da estátua de D. Pedro IV, no Rossio, inaugurada em 1870. Também na sala das sessões da Câmara dos Deputados, no Palácio de São Bento, remodelada pelo arquitecto Ventura Terra e inaugurada em 1903, se representaram, para lá das capitais de distrito, as armas de Angola, Cabo Verde, Moçambique e Índia. E o fenómeno não se circunscreveu a Portugal, pois no Brasil, no Real Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro, inaugurado em 1888, figuraram-se no seu salão nobre as armas de Nova Goa, Goa, Macau, São Paulo de Luanda e São Sebastião de Moçambique, a par das de outras cidades portuguesas continentais e insulares, evidenciando-se assim a comunhão histórica e cultural entre esses vários espaços do globo.
Convém ter presente, por conseguinte, que, apesar de o Estado Novo ter procedido à reorganização dos respectivos símbolos, conferindo-lhes uma maior uniformidade visual, a heráldica ultramarina não foi uma criação daquele regime, nem a sua utilização em locais públicos e dotados de significado político foi uma invenção do seu tempo.
Afigura-se-me, pois, que os brasões florais da praça do Império, integrados no seu contexto – e a exemplo das outras manifestações heráldicas ultramarinas atrás citadas –, valem como um documento patrimonial que, mais do que ser olhado como uma apologia de um certo passado, tem interesse como pretexto para o seu conhecimento e reflexão. Mas esses brasões são também expressão de um fenómeno extraordinário, inegável e que se mantém vivo e actual, traduzido na portugalidade e na lusofonia que resultaram da expansão marítima.
Creio, assim, que a anunciada intenção de recuperar o projecto original de Cottinelli Telmo não tem em consideração o sentido mais completo e complexo da Praça do Império e, mais do que revelar um desejo autêntico de retomar o seu purismo conceptual, constitui uma falácia para mascarar o revisionismo histórico subjacente à decisão de remover os brasões florais. Porque, é bom lembrar, a intenção inicial da Câmara Municipal de Lisboa era a de remover apenas os brasões das províncias ultramarinas – que considerava estarem “ultrapassados” e que dizia poderem “ser ofensivos” – restaurando os restantes.
Por tudo o exposto, e ao contrário do que afirmou o conceituado arqueólogo Luís Raposo (PÚBLICO, 8.2.2021), entendo que defender a preservação integral dos canteiros brasonados da Praça do Império não é nem uma “infantilidade passadista”, nem a demonstração de uma “ideologia reaccionária”, nem sequer uma qualquer pretensão de “congelar o espaço público”. Porque na verdade aqueles brasões florais, apesar do estado de abandono em que a autarquia lisboeta os deixou, são ainda hoje – parafraseando o sugestivo título de Franz-Paul de Almeida Langhans –, uma autêntica “ciência de temas vivos”.