Testagem massiva e a última hipótese de fazer bem as coisas
A testagem massiva anunciada pelo Governo é positiva, mas não existe um verdadeiro plano. Precisamos de um urgentemente, para evitar um novo falhanço.
Em março de 2020 criámos o grupo cívico Info-Covid19 para disponibilizar informação sobre a pandemia, acompanhando de perto a escalada infernal do vírus e devorando todos os artigos noticiosos e científicos que pudemos encontrar. Não era para menos. Era a nossa vida que estava (e continua a estar) em jogo. Curiosamente, os artigos mais impactantes foram criados por autores sem formação na área, conseguindo interpretar e sintetizar todo o conhecimento existente em documentos “legíveis” de apoio à decisão. Com Coronavirus: Why you must act now, de 10/03/2020, Tomas Pueyo impeliu os mais diversos líderes a levarem as suas famílias para casa e os artigos seguintes revelavam já a receita aprendida com as democracias asiáticas para os governos usarem na luta contra a covid-19.
Infelizmente, a supressão do vírus como chave para o controlo sanitário e manutenção da atividade económica foi em grande medida descurada pelo Governo. A pedra basilar do controlo de uma pandemia – evitar que o vírus entre – foi esquecida, com um controlo de fronteiras inexistente. Igualmente incompreensível foi a falta de investimento no rastreamento, tendo estado Portugal a gerir 15 mil casos diários com mil rastreadores, quando o rácio ideal é de um caso por cada cinco profissionais. Finalmente, o importante reforço que a app StayAway Covid poderia dar, não obstante uma já esperada baixa adesão, foi inexplicavelmente desperdiçado.
Ainda que outros países europeus tivessem sido igualmente incompetentes até ao inverno, o mais grave foi Portugal não se ter apercebido da sua fragilidade resultante da falta de planeamento e preparação, não reconhecendo a sorte tida na primeira vaga e conformando-se com uma escalada de mortes em Novembro e Dezembro. A estocada final veio com o criticado relaxamento de restrições no Natal, em contraciclo com uma Europa muito mais prudente, proporcionando-se milhões de oportunidades de transmissão do vírus em reuniões familiares à volta de uma mesa sem máscara. Milhares de recém-infetados regressaram depois às suas residências habituais para disseminarem a doença até ao mais recôndito concelho do país.
Estes parágrafos não servem só para enquadrar o tema em epígrafe, mas para reforçar que todas as medidas referidas são fundamentais para controlar o vírus e não podem ser esquecidas. Infelizmente, ainda na passada segunda-feira, a diretora-geral da Saúde revelou não ser necessário mais rastreadores, contrariamente a todas as recomendações internacionais em vigor.
A testagem massiva frequente (TMF) introduzida em Setembro pelo inovador epidemiologista de Harvard Michael Mina adota o princípio de não esperar pelas infeções ocorrerem para depois testar, mas fazê-lo antecipadamente e de forma periódica a grupos alargados de pessoas sem sintomas. Um estudo deste ano demonstra que uma testagem semanal (por si só) reduz o índice de transmissibilidade Rt em 50%, o que, complementado por outras medidas, leva a pandemia à extinção em semanas. O estudo conclui que é muito mais importante a frequência e a rapidez de resposta de um teste do que a sua sensibilidade, tornando os testes rápidos na ferramenta ideal numa ótica de saúde pública para controlo da pandemia. O Info-Covid19 esclarece outras dúvidas frequentes sobre estes testes num documento “one-page”.
Na iminência do surgimento da 3.ª vaga, decidimos criar uma petição pública e uma carta aberta, enviada às maiores instâncias políticas para dar voz à TMF, a qual teve imediatamente a adesão de inúmeros médicos de saúde pública e bastante exposição mediática. Semanas depois, na reunião do Infarmed, o prof. Carmo Gomes faz um apelo urgente pela testagem agressiva, em consonância com centenas de cientistas internacionais, focando-se em dois eixos: 1) aumento brutal da testagem e rastreamento epidemiológico e 2) testagem regular com testes de antigénio. O “murro na mesa” teve eco junto do primeiro-ministro e rapidamente se anunciaram medidas, todavia sem um verdadeiro plano de suporte, desconhecendo-se em grande medida quais os objetivos, como implementá-los e com que recursos.
Comecemos com os objetivos. Contrariamente ao que tem sido referido, deveríamos atingir a meta de 500 casos diários para nos podermos desconfinar, em linha com o estabelecido pela Alemanha. Para vencer a resistência dos 1500 casos abaixo da qual será difícil descer, dever-se-á ambicionar um mínimo de 150 mil testes diários por forma a garantir uma positividade de 2%. Esta dinâmica pressionará as infeções a descerem ainda mais, até ser conseguida uma taxa de positivos abaixo de 1%, como a apresentada pela Dinamarca, país que testa sete vezes mais do que Portugal.
No primeiro eixo, para melhorar o rastreio e chegar a 75 mil testes diários, precisamos de 3 a 4 mil pessoas adicionais – não necessariamente profissionais de saúde – e automatizar um sistema absurdamente ineficiente. A rapidez de resposta é fundamental! Na mesma linha, devem ainda ser encetados todos os esforços para ressuscitar a aplicação StayAway Covid.
No segundo eixo, a TMF deve assegurar diariamente pelo menos outros 75 mil testes. Tal como anunciado pela ministra, faz sentido que se comece nos concelhos de elevada prevalência, mas a frequência deverá ser semanal e não quinzenal, periodicidade que reduz dramaticamente a eficácia do sistema. Para alcançarmos esses números rapidamente são necessários vários métodos complementares. Mesmo recorrendo à subcontratação, será virtualmente impossível garantir uma boa cobertura e frequência de testagem somente através da mobilização de equipas para os locais de “elevada exposição social”. É essencial que a operação seja descentralizada com o recurso a muitas centenas de laboratórios, farmácias e centros de rastreio existentes, incentivando as próprias pessoas a deslocarem-se aos locais mais próximos uma vez por semana. Tal estratégia aliviará recursos humanos já esgotados e reduzirá brutalmente o investimento.
A exigência do teste semanal para trabalhar já é uma realidade em várias empresas e deve ser estendido a todo o universo empresarial enquanto a situação se mantiver crítica. Adicionalmente, a exigência de um teste negativo para se poder aceder a serviços com risco acrescido, como restaurantes ou ginásios, pode ser um incentivo extra para mais pessoas se testarem regularmente e de forma gratuita. Estes critérios têm que ser discutidos, afinados, e depois comunicados de forma eficaz à sociedade, evolvendo-a no processo. Para isso será fundamental analisar-se os países que estão já a escalar massivamente a testagem, em particular a Dinamarca, a Áustria e o Reino Unido, país que apresenta um plano de testagem muito detalhado e onde os testes de antigénio são já em maior número do que os PCR.
O tempo escasseia. Cada dia de confinamento paga toda a TMF! Precisamos de medidas muito ambiciosas e proactivas. É imperativo jogar pelo seguro e investir sem contemplações. A TMF devidamente operacionalizada por uma equipa a constituir especificamente para o efeito permitirá andarmos à frente do vírus. A positividade muito baixa será o fusível para se detetar um novo surto muito mais cedo e despoletar medidas cirúrgicas de supressão. Finalmente, um conhecimento mais aprofundado das origens das infeções, proporcionado por diversos estudos já existentes, permitirá auxiliar na escolha das atividades a abrir primeiro e com que cuidados.
A economia não aguenta até setembro fechada. Mas só a conseguiremos abrir em segurança usando todas as armas à nossa disposição. Não podemos falhar outra vez!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico