Superamo-nos na crise
Em Portugal há um viés ideológico contra a participação dos privados na saúde, mas num mais país com recursos limitados ainda é mais essencial que não se desperdice nenhuma capacidade.
Parece que a profecia de Jean Monnet continua a concretizar-se: “A Europa será forjada nas crises e será a soma das soluções adotadas para responder às crises.” Em 2020, a pandemia de covid-19 lançou a Europa – toda a Europa e, na verdade, todo o mundo – para uma crise sanitária sem precedentes nos últimos 100 anos e com muitas consequências sociais e económicas.
Num primeiro momento, de choque, imperou a ação unilateral (falou-se no desvio de ventiladores, na proibição de exportação de medicamentos, na compra especulativa de equipamento de proteção individual, etc.), mas felizmente que de imediato se percebeu que o problema era comum e em conjunto o resolveríamos melhor.
A pandemia teve ondas e também não atingiu ao mesmo tempo todos os países, o que permitiu aprender com os outros e adequar os recursos à medida que foram sendo necessários.
No caso português, a primeira onda foi relativamente benigna, a segunda apanhou-nos em outubro no norte do país e logo de seguida entrámos nesta fase mais dura em que desde meados de dezembro temos vários dias com mais de 1000 novos casos por milhão de habitantes. Este é um momento de grande tensão no sistema de saúde, com um número nunca antes observado de doentes internados e de necessidades de cuidados intensivos.
Portugal apresentava algumas condições de partida frágeis, nomeadamente um acentuado envelhecimento e dependência da população e uma capacidade instalada no sistema de saúde abaixo da média europeia (em termos de camas, UCI e enfermeiros por 100 mil habitantes).
Numa situação de particular dificuldade, todo o sistema está plenamente envolvido nas necessidades dos cidadãos. Em Portugal há um viés ideológico contra a participação dos privados na saúde, mas num mais país com recursos limitados ainda é mais essencial que não se desperdice nenhuma capacidade.
Os hospitais privados estão desde a primeira hora disponíveis para participar na luta nacional contra a covid-19 e para colaborar com o SNS nos termos que as autoridades entenderem oportuno. Para além da cedência de equipamentos e da disponibilização de hospitais e de enfermarias completas, estamos a receber doentes (covid e não covid) do SNS e há blocos operatórios a serem utilizados por equipas de hospitais públicos.
Depois de algumas semanas em que alguns tentaram assustar com argumentos ideológicos, o primeiro-ministro português, António Costa, foi agora taxativo quando, em visita a um hospital privado, afirmou: “Quero aqui deixar uma palavra de agradecimento, porque uma coisa é a agitação do debate político e outra coisa é a realidade. Desde março temos estado em contacto, temos trabalhado juntos, e o SNS e os hospitais privados e do setor social, ou das Forças Armadas, têm estado mobilizados sempre que necessário para responder a esta situação de pandemia.”
A crise acaba por gerar relações, acabar com tabus e colocar as pessoas a trabalhar em conjunto. Tal como o Presidente Joe Biden disse há uns dias: “Não estamos a falar de políticas, estamos a falar de salvar vidas.”
Nesse mesmo sentido, registamos os movimentos de solidariedade internacional e desde logo a disponibilidade da Alemanha, da Áustria, do Luxemburgo e de Espanha para tratarem doentes portugueses, se tal fosse necessário.
No passado dia 3 de fevereiro Portugal recebeu o apoio de uma equipa de 26 profissionais de saúde alemães. Este é o caso duplamente exemplar de colaboração. Por um lado, colaboração entre dois países amigos. Por outro lado, colaboração entre setores porque os profissionais alemães vêm para tratar doentes dos hospitais públicos, mas foi um hospital privado que, a pedido do Ministério da Saúde, os acolheu. Nas palavras do hospital privado: “Para a Luz Saúde, este é um momento de compromisso absoluto com o país, com os portugueses e com o sistema nacional de saúde.”
Como acaba de dizer a ministra da Saúde de Portugal, “há muitas lições que vão sair desta pandemia e a necessidade de trabalhar ombro a ombro é uma delas. Se não fosse a nossa capacidade conjunta de falarmos, de nos organizarmos, construir pontes, certamente não teríamos respondido a muitos doentes e famílias”.
O filósofo português José Gil escreveu há dias um ensaio apelando à união “porque só unidos poderemos resistir e, apesar de todas as perdas e feridas, sair talvez mais fortes desta catástrofe”. Estamos a aprender com a lição e, em Portugal como na Europa, queremos sair mais fortes desta pandemia, com sistemas de saúde mais integrados, acessíveis e sustentáveis.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico