Luz e sombras na colina americana
O primeiro mês de Biden na Casa Branca provou que ainda é possível acreditar em “maioria de bom senso” que ultrapasse a fratura americana. Mas a aparente sobrevivência política de Trump, reforçada pelos dez votos que faltaram para os dois terços necessários para o “impeachment”, alerta para a “doença antidemocrática” que pode acabar com o Partido Republicano como o conhecíamos.
“Sem unidade não há paz, apenas amargura e fúria. Nenhum progresso, só indignação esgotante. Não há nação, apenas um estado de caos. Temos de pôr fim a esta guerra incivil”
Joe Biden, tomada de posse, 20 janeiro 2021
Os Estados Unidos ainda são a maior potência do mundo, mas em quase todos os aspetos são uma potência em declínio – ou, pelo menos, em desaceleração.
O problema americano já tinha começado antes de Trump. Mas os quatro anos da pior presidência dos últimos 90 anos agravaram fortemente essa tendência. Depois da lamentável experiência populista e demagógica de ver na Casa Branca alguém que não hesitou em atacar a Democracia por mero interesse egoísta de tentar preservar o poder perdido nas urnas, a América de 2021 é menos dominante, menos confiável, menos inspiradora e muito menos prestigiada.
Há muitas sombras a escurecer o farol americano – mas é nos momentos mais arriscados e assustadores que se revelam as suas mais notáveis promessas. Fixem este nome: Joe Neguse, a revelação do “impeachment”. O jovem congressista do Colorado, 36 anos e filho de refugiado da Eritreia, teve desempenho brilhante nas alegações finais da acusação democrata. Profundo e sólido. Sério e inspirador. A força da América é que mesmo nos piores momentos descobre sempre a melhor forma de encontrar o Futuro.
O momento político em Washington DC parece ser de transição.
Os primeiros sinais da presidência Joe Biden explicam o racional da escolha do eleitorado: clara maioria da sociedade ansiava por um regresso à normalidade possível. O sucessor de Trump prometeu, na tomada de posse, “voltar a liderar pelo poder do exemplo e não pelo exemplo do poder". A rutura com o antecessor não podia ser maior.
Biden tem conseguido baixar a temperatura e está a construir uma “maioria de bom senso” capaz de ultrapassar a profunda fratura política, ideológica e, mais do que isso, identitária que teve na gravíssima invasão do Capitólio o seu exemplo limite.
A inquietação é evidente.
Mesmo depois de dois meses de negacionismo eleitoral, mesmo depois de várias dezenas de contestações judiciais perdidas, mesmo depois dos Grandes Eleitores terem confirmado plenamente a vitória de Biden nos Estados, mesmo depois da validação dessa eleição na sessão conjunta no Capitólio, Trump tem 70% dos 74 milhões de eleitores que votaram nele a continuarem a apoiá-lo.
Mais grave: três em quatro republicanos acreditam, ainda hoje, que Trump ganhou as eleições. Mas a “doença americana” é bem mais vasta: um em cada seis brancos com estudos superiores na América consideram que a invasão do Capitólio pode ser justificada “porque a eleição foi roubada”.
Como recordou o senador Mitch McConnell, líder da agora minoria republicana no Senado, logo a seguir a ter votado pela absolvição, num comportamento salomónico que diz tudo sobre as contradições de um partido em conflito consigo próprio: “6 de janeiro foi uma desgraça. Cidadãos americanos atacaram o seu próprio governo (…). Nossos compatriotas bateram em polícias e ensanguentaram alguns deles. Vandalizaram o Senado. Tentaram atacar a speaker. Lançaram cânticos sobre assassinar o vice-presidente. Foram alimentados por falsidades lançadas pelo homem mais poderoso do planeta – que estava zangado por ter perdido a eleição. As ações do ex-Presidente Trump foram um desgraçado abandono do dever.”
A dualidade de McConnell é todo um programa. É reveladora dos “ziguezagues” que os republicanos tiveram que fazer durante a presidência Trump. O mesmo McConnell que, no Senado, foi fazendo o jogo do ex-Presidente, mesmo nos momentos mais indefensáveis (Charlotesville, Relatório Mueller, primeiro “impeachment” sobre a Ucrânia), percebeu – tão tarde – com a invasão do Capitólio que não dava mais para aceitar o inaceitável (mas só nas palavras, não no voto).
E viu no protagonismo da negacionista conspirativa QAnnon Marjorie Greene, congressista republicana da Geórgia, a “linha vermelha” para começar a agir: “Mentiras lunáticas e teorias da conspiração são um cancro para o Partido Republicano e para o país.”
Está aberta a guerra interna no Partido Republicano, condenado a enfrentar a contradição consigo próprio: legitimar o trumpismo, que terminou com o maior ataque à democracia, ou assumi-lo como tese oficial? Será possível que esse dilema exista sem que haja a formação de um novo Partido Patriota, liderado por Trump de cariz identitário e populista, ou, no polo oposto, com eventual saída dos “moderados”?
As escolhas nas primárias republicanas para as intercalares de 2022 vão ajudar-nos a perceber quem será mais forte: a ala institucional, de conservadorismo “clássico”, protagonizada por Liz Cheney e Mitt Romney, ou a herança do trumpismo, colada à invasão do Capitólio e ao negacionismo eleitoral, mas vista por claríssima maioria da direita como legítima representante da via que dominou o Partido Republicana desde 2016 (Ted Cruz, Josh Hawley). Pelo meio, há dois nomes a olhar com atenção, talvez os únicos capazes de fazer a ponte possível entre duas alas nesta fase inconciliáveis: o senador Marco Rubio, pelo grande resultado de Trump na Florida, e Nikki Haley, ex-embaixadora nas Nações Unidas e antiga governadora da Carolina do Sul. Nikki será a única figura de topo que foi aceite pela esfera trumpista mantendo “distância de segurança” (reforçada agora por carta em que declarou ser tempo para o partido seguir em frente sem Trump).
A sobrevivência política de Trump será mais aparente do que real. Mesmo não estando impedido de concorrer à presidência em 2024, espera-o a via sacra judicial: pelas prováveis consequências criminais da invasão do Capitólio (no Senado foi só a parte política), pelo telefonema que fez ao secretário de Estado da Geórgia a pressionar para inverter o resultado naquele Estado (as investigações já começaram) e pelos negócios das empresas (a decorrer no Southern District de Nova Iorque).
Enquanto acontecia a inominável invasão do Capitólio, Amanda Gorman, luminosa poetisa negra de 22 anos que já tinha sido escolhida para recitar um poema na tomada de posse, começou a tratar das últimas linhas de The Hill We Climb ("A Colina que Escalamos"), cuja escrita tinha iniciado em dezembro, mas não havia encontrado conclusão: “A colina que escalamos/ se para isso tivermos coragem/ é porque sermos Americanos é mais do que o orgulho que herdámos/ é o passado que nos atravessa/ e como o podemos reparar/ vimos uma força que estilhaçou a nossa nação/ em vez de a partilhar/ teria destruído o nosso país se conseguisse reduzir a democracia/ e esse esforço quase prevaleceu (…) quando o dia chega saímos da sombra/ com chama e sem medo/ a nova madrugada surge se a libertarmos/ para isso há sempre Luz/ se assim formos corajosos para a vermos/ se assim formos corajosos para sê-la.”
Há sombras a escurecer a colina americana, mas a Luz resiliente daquele grande país nunca se apaga.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico