Abrir caminho
Quando, à angustiante pergunta “onde encontramos cabeças que nos orientem?”, responde com o Chega feito partido guia, Fátima Bonifácio está a confirmar o seu próprio diagnóstico sobre “o afundamento da criatividade intelectual e imaginação política” na Europa. E na “direita clássica” portuguesa.
Reconheço ao artigo que Fátima Bonifácio (FB) publicou a 11/2 neste jornal a virtude da clareza. A autora responde à questão de saber que tipo de relação deve a direita conservadora (a que chama “clássica”) estabelecer com a extrema direita xenófoba e racista, em quatro andamentos (ainda que não necessariamente pela ordem que se segue).
Primeiro andamento.
“As democracias, e Portugal em particular, enfrentam hoje em dia problemas que […] parecem insolúveis.” Portugal precisa “de uma barrela de alto a baixo”, mas a verdade é que “grande parte da Europa se tornou ingovernável”, face à irrequietude dos povos tornados “cada vez mais difíceis de contentar”. Ou seja, a democracia como sistema político tornou-se incapaz de superar a sua própria crise e agoniza na estagnação e na impotência.
Segundo andamento.
No centro das dificuldades está a ineficácia das eleições para assegurar uma resposta “liberal e democrática, mas forte” à magnitude dos problemas. Como combinar, interroga-se FB, “reformismo e popularidade e ganhar eleições”, quando raramente na Europa se engendraram soluções de popularidade com governança “forte”? Ou seja, para falar claro, a violência e a extensão das “reformas” exigidas (que prudentemente a autora se dispensa de apresentar) são incompatíveis com eleições livres e democráticas.
Terceiro andamento.
No caso das eleições portuguesas a coisa ainda é pior. Socorrendo-se de um texto do seu correligionário Rui Ramos sobre as eleições presidenciais, FB entende que o país só vota maioritariamente à esquerda porque está acorrentado ao Estado clientelar criado pelo PS. Segundo decreta Ramos, e FB confirma, “o Estado é de esquerda mas o país não é”. Ao contrário do que os resultados eleitorais enganadoramente indicam, explica-nos a autora, o país não vota maioritariamente à esquerda, é sim “colonizado pela esquerda”. Trump não diria melhor.
Ou seja, em Portugal as eleições teriam deixado de ser uma forma de legitimar o poder político. Elas não exprimem a vontade real dos eleitores, que só Ramos e FB sabem qual é. Retomando os velhos tropos do ultramontanismo reacionário dos anos 20 e 30 do século passado, esta nova direita conservadora atribui-se a si mesma, por força de uma misteriosa ordem natural das coisas (“manda quem pode”), o dom de saber o que realmente quer o povo, qual o verdadeiro sentido do “interesse da nação” e até o dever de impor ao país, mesmo contra ele próprio, os duros remédios da “salvação nacional” e das “barrelas”. A partir daqui vale tudo.
Quarto andamento.
E vale mesmo. FB constata que, na vigência da democracia, “a direita não se conseguiu impor (na realidade é disso que se trata) com boas maneiras e falinhas mansas”. É portanto o tempo da brutalização da política, a hora das “maneiras” do Chega, de a extrema direita xenófoba e racista agir como “pelotão da frente” para “abrir caminho” a uma “direita clássica” que, candidamente, a autora classifica como “democrática e – sobretudo – liberal”. Fica-se na dúvida se esta linguagem quase militar é ou não retórica… Não fosse o vulgo não reparar, FB insiste no facto do Chega ser o único partido, da direita à esquerda, que tem algo de novo para oferecer.
O problema é que esse novo é velho e sinistro. Tudo isto é regressão: a desqualificação das eleições é a porta de entrada desse novo tipo de ditaduras “iliberais” onde a autocracia se confunde com o neoliberalismo à solta. O discurso catastrofista sobre a inviabilidade da democracia e até do país constituiu-se, desde finais do século XIX, como prefácio ideológico de todos os atentados políticos contra a liberdade e a democracia no século XX. Ainda que a autora fuja a explicar-se sobre o que realmente propõe como solução política, o seu argumentário é o da fundamentação de uma estratégia subversora da atual ordem constitucional e democrática. Tal como o do Chega.
Numa coisa estou de acordo com FB. Quando, à angustiante pergunta “onde encontramos cabeças que nos orientem?”, responde com o Chega feito partido guia, FB está a confirmar o seu próprio diagnóstico sobre “o afundamento da criatividade intelectual e imaginação política” na Europa. E na “direita clássica” portuguesa.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico