A pior cegueira
Sim, o eleitorado do PS mobilizou-se para votar contra o radicalismo, o racismo e a xenofobia do candidato da extrema-direita! Mas sinalizou também de forma clara, através do seu voto, que não se reconhece nas figuras de esquerda que, no seu registo normal, descaem constantemente para os discursos populistas e para a inconsistência das soluções fáceis e justicialistas.
No texto de balanço das eleições presidenciais que publicou neste jornal, o que mais surpreende em Pedro Nuno Santos – atendendo às suas ambições políticas – é a falta de sentido estratégico da sua análise. Afirmar que a opção do Partido Socialista por não apoiar qualquer dos candidatos “contribuiu involuntariamente para a afirmação do candidato da extrema-direita” é não ver bem ao longe e não perceber o que se passou nas eleições de 24 de janeiro e, pior, é não perceber quais são os desafios, e quais são as oportunidades, que se colocam ao PS no médio prazo.
Ao acentuar a dimensão tática da sua forma de ver a política, Pedro Nuno Santos escolhe falar só para dentro do partido. É uma pena, sobretudo para ele próprio, uma vez que o PS precisa de contributos que o ajudem a construir propostas estratégicas que sirvam da melhor forma, hoje e no futuro, o interesse dos portugueses. Vale a pena lembrar o legado de Mário Soares: “Sou um homem de esquerda. Sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata. E, antes ainda, sou português.”
1. Foi com isto presente que os órgãos do PS escolheram não apoiar um candidato nestas eleições presidenciais, dando toda a liberdade aos seus militantes. Em primeiro lugar, tiveram em mente a avaliação que os militantes – e, sobretudo, os eleitores socialistas – fizeram do primeiro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa: isso, aliás, foi visível na forma como as pessoas se mobilizaram durante a pré-campanha, campanha e no dia das eleições para dar o seu voto a um discurso integrador, inclusivo e mobilizador, em detrimento de discursos populistas.
Sim, o eleitorado do PS mobilizou-se para votar contra o radicalismo, o racismo e a xenofobia do candidato da extrema-direita! Mas sinalizou também de forma clara, através do seu voto, que não se reconhece nas figuras de esquerda que, no seu registo normal, descaem constantemente para os discursos populistas e para a inconsistência das soluções fáceis e justicialistas.
No dia 24 de janeiro o eleitorado do PS mostrou – uma vez mais! – o seu amor à liberdade, à democracia e ao Estado de Direito, bem como a sua opção de base por projetos políticos que promovam um desenvolvimento social, económico e estrutural sustentável, com solidariedade e igualdade de oportunidades para todos, aberto à diversidade, à iniciativa, à inovação e ao progresso.
Não há nisto novidade: é esta a missão histórica do PS na democracia que saiu do 25 de Abril!
2. Ao tomar a decisão de não apoiar um candidato, o PS teve também em conta a gravidade do período pandémico que atravessávamos (e atravessamos), o qual obrigava (como obriga) a uma efetiva cooperação institucional, tornando inviável manter um combate político com o Presidente em funções durante o período pré-eleitoral. Só uma notória miopia política impede a compreensão de uma coisa que foi tão evidente, já não digo para os comentadores... mas para a maioria do povo português.
Essa miopia tática impede também de perceber o valor estratégico desta opção num período tão difícil como o que atravessamos devido à pandemia da covid-19: esta opção constitui o primeiro e decisivo passo para que o PS possa voltar a ter, nas presidenciais de 2026, um candidato vencedor que polarize, federe e represente as esquerdas do espetro político português na mais alta magistratura da nação. Tal como Marcelo Rebelo de Sousa, vindo da direita, teve agora condições para captar os votos do centro-esquerda, também esse candidato terá, em 2026, estatura e capacidade para recolher o reconhecimento e a confiança de muitos eleitores do centro-direita.
3. Ver nesta dinâmica presidencial, presente e futura, um sinal do decaimento do PS para o “centrismo” é, uma vez mais, não perceber o óbvio: desde 2015 que o PS, liderado por António Costa, está a ser em Portugal a mais poderosa e eficiente alavanca para (nas palavras do próprio Pedro Nuno Santos) “reforçar a polarização entre esquerda e direita e, com isso, a estabilidade da nossa democracia”.
A “geringonça” – e Pedro Nuno Santos devia sabê-lo, porque participou de forma privilegiada na sua construção e gestão – não foi apenas uma forma bem sucedida de a esquerda portuguesa se organizar como alternativa efetiva à direita e de funcionar em bloco: foi também a primeira vez que o Bloco de Esquerda e o PCP experimentaram as exigências democráticas da governação. E foi, igualmente, a primeira vez que, desde o 25 de Abril, se verificou uma evidente diminuição da conflitualidade laboral e social, substituída por uma crescente cultura de diálogo e de compromisso que já tanta falta fazia ao regime.
Este mérito de ter traçado uma linha de separação claríssima entre Esquerda e Direita no exato centro do sistema político em Portugal, ninguém o pode tirar a António Costa: polarizou e federou as esquerdas durante quatro anos; e, nas urnas, a esquerda – toda a esquerda! – teve em 2019 o seu melhor resultado de sempre.
Ao contrário, nestas presidenciais de 2021 foi a candidatura apoiada por Pedro Nuno Santos que retirou votos aos candidatos do BE e do PCP e que deixou estes dois partidos de esquerda na situação dificílima em que se encontram. A candidatura de Ana Gomes não juntou, nem agregou, o que quer que seja: apenas tirou peso e relevância política aos aliados naturais do PS à sua esquerda.
Perante estas evidências, é incompreensível ver Pedro Nuno Santos envolver-se numa retórica desfasada da realidade (como quando vai buscar o exemplo de Macron numa França que, ao contrário de Portugal, é presidencialista), para ajustar os factos políticos saídos destas presidenciais e encontrar nesse exercício capital de queixa contra António Costa, primeiro-ministro do Governo do qual ele próprio faz parte.
A ambição, por vezes, cega. E, como escrevia o célebre cronista brasileiro Nelson Rodrigues, “o pior cego é o míope”.
Socialista, presidente da Câmara de Valongo
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico