Já imaginou o rio Douro sem barcos rabelos? Nós também não
Inacreditavelmente, está neste momento um processo em curso por parte do Porto de Leixões para o despejo deste estaleiro, instalado nas margens ribeirinhas do Douro, ao lado do Cais de Gaia. Que todas as vozes em defesa do património se façam ouvir, que todos e todas aquelas que não aceitam que se perca a história da nossa cidade se levantem.
Na passada semana, a empresa detentora do estaleiro naval de barcos rabelos sediado no Cais de Gaia foi notificada com um aviso. Esse ultimatum, assinado pela Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo S.A. (APDL), vem assim terminar o contrato de ocupação de domínio público hídrico por parte da empresa Socrenaval. Mas não é só isso que termina se esta empresa desaparecer daquelas instalações. Consigo, leva mais de um século de construção artesanal de barcos rabelos: o único estaleiro que, atualmente, mantém uma produção artesanal.
É por demais evidente que o interesse da APDL naquele terreno ribeirinho tem em vista a sua utilização para fins que lhe permitam rentabilizá-lo financeiramente. A história já é antiga e as tentativas de despejar o estaleiro de barcos rabelos já aconteceu várias vezes. Para aquele espaço, já se imaginaram as mais variadas soluções para despejar o estaleiro. O menu de novas atrações turísticas fast-food para a zona é extenso e apetitoso para quem imagina a transformação de um património histórico numa Disneylândia.
À Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia cabe mais do que a timidez de se propor intermediar o conflito que, tudo indica, será resolvido nos tribunais e não através de um acordo. A intransigência da APDL não parece permitir outra saída que não essa. Um município que tem assumido para si a responsabilidade de reabilitar a orla marítima e ribeirinha, valorizar turisticamente esta zona histórica onde o Vinho do Porto é tema central, tem de utilizar os meios ao seu dispor para preservar o interesse público daquilo que – pasme-se – é a razão da tão atrativa zona turística.
Não cabe a um executivo autárquico defender este ou aquele negócio privado. A ética republicana exige prudência e transparência na gestão de processos desta natureza. Mas há uma verdade absoluta à qual ninguém pode virar as costas: o património material e imaterial constituído hoje por um conjunto de significantes sociais e históricos onde os barcos rabelos (a sua conceção e produção, a sua ligação à região, à economia do Vinho do Porto e à história de um rio) se encaixam tem de estar acima de qualquer interesse privado.
Para esse efeito, há já ações que podem e devem ser tomadas. A empresa detentora deu entrada, muito antes de este episódio ter sucedido, de um pedido de classificação do seu estaleiro e da atividade ali desenvolvida como de interesse público, dada a sua importância patrimonial. Este elemento é fundamental para o próprio município potenciar a classificação da zona ribeirinha como Património da Humanidade. Qualquer apoio da autarquia nesse processo lançado pela empresa deve ser entendido como de interesse público. Em segundo plano, devem ser estudadas medidas para o estudo histórico e a musealização desta atividade artesanal. Só fortalecendo os laços entre a história e as políticas públicas é que conseguiremos prevenir mais abusos como este.
É possível imaginar a erguer políticas públicas que preservem o nosso património e mantenham as portas abertas a todos que queiram conhecer o nosso município. E para isso, lanço o apelo: que todas as vozes em defesa do património se façam ouvir, que todos e todas aquelas que não aceitam que se perca a história da nossa cidade se levantem.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico