Sobre o sofrimento ético nos hospitais
A pandemia teria sido um momento para repensar o SNS. Em vez disso, todos os dramas da organização do trabalho no SNS parecem ter-se agravado.
Temos assistido a diversas descrições alarmantes dos hospitais públicos. Multiplicam-se os apelos de profissionais de saúde pedindo novas medidas de confinamento e alertando que os médicos estariam em “sofrimento ético”, exaustos e em “burnout”.
Importa desde logo levar a sério estes sinais de alerta, que revelam a amplitude do sofrimento psicológico vivido. Sem o empenho e o trabalho vivo destes cuidadores, os hospitais não podem funcionar com qualidade – é preciso cuidar de quem cuida. Mas devemos, também, prestar atenção aos termos escolhidos para descrever o drama humano, pois estes podem revelar problemas profundos de organização do trabalho no sector da saúde.
Referimo-nos em particular ao termo “sofrimento ético”. Trata-se de uma noção inusitada, mas que parece ter sido adoptada pelos médicos e enfermeiros, certamente porque consideram que lhes permitiria transmitir a sua vivência. Na verdade, o termo de sofrimento ético tem uma história e um sentido que vale a pena detalhar aqui, se quisermos entender as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores hospitalares, e por um leque mais vasto de trabalhadores em Portugal.
O conceito de sofrimento ético foi cunhado pelo psicanalista e médico do trabalho francês Christophe Dejours há três décadas. Os estudos de Dejours e da sua equipa no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, permitiram evidenciar diferentes formas de sofrimento psíquico causadas pelas novas técnicas de organização do trabalho, entre as quais se destaca o sofrimento ético, que surge quando os trabalhadores endossam, em nome do trabalho, práticas que julgam moralmente condenáveis. O sofrimento ético resulta de um conflito entre aquilo que os trabalhadores consideram correcto ou justo fazer, e aquilo que acabam por fazer realmente. Este conflito pode assumir formas particularmente graves quando os trabalhadores consideram, por exemplo, que estão a enganar os utentes que juraram ajudar ou servir, ou que não lhes estão a prestar um serviço com a qualidade devida. Na essência do sofrimento ético encontra-se a sensação de infligir a outrem um tratamento injusto, a consciência de ser responsável por um sofrimento que poderia ter sido evitado. Ou seja, o sofrimento ético manifesta-se sobretudo nas situações em que os trabalhadores vislumbram ainda uma alternativa, uma outra forma de actuação, que permitiria evitar danos que lhes parecem injustificados.
Pode ser este o cerne da questão levantado pelos apelos dos médicos e enfermeiros do SNS, que não sofreriam apenas por se julgarem vítimas de uma conjuntura, mas, no caso do sofrimento ético, por serem atores conscientes co-responsáveis pela organização do trabalho. Ou seja, a denúncia do sofrimento ético pode ser interpretada como uma denúncia das condições de trabalho degradadas no SNS. Há que olhar para a dissociação entre o que estes profissionais acham que se deve fazer e o que é realmente feito. A organização do trabalho nos hospitais teria desvirtuado – segundo a hipótese dos estudos neste campo – os valores que os profissionais de saúde se esforçam por honrar quotidianamente no cuidado dos doentes. Mas, é preciso dizê-lo, não foi apenas a pandemia que os impediu de exercer correctamente a sua profissão, pois a falta de meios humanos e de recursos era bem anterior e conhecida.
O SNS passou por uma série de alterações desde os anos 80, mas, sobretudo, nos anos 2000, que levaram a práticas médico-doente que são contrárias ao sentido do trabalho destes profissionais de saúde. Nos anos 80, o fim da gestão democrática abriu portas a uma hierarquia tecnocrata, que pressiona para actos médicos baseados em métricas, contrárias à qualidade do trabalho como medida, e que deslaçam a relação médico-doente, sem a qual não há acto médico (como não há “ensino” à distância, são actos coetâneos); seguiu-se a introdução da competição do SNS contra si próprio, com os Hospitais SA e EPE, o fim da exclusividade e das carreiras médicas.
As carreiras médicas, conquista que viu a efectividade na luta dos médicos na revolução dos cravos, agregada ao então Serviço Médico à Periferia, são condição sine qua non para haver autonomia, investigação, formação e trabalho em equipa. E confiança e reconhecimento interpares – fundamentais para não haver sofrimento ético.
Depois verificou-se a manutenção de salários muito baixos na área da saúde que eram compensados com o recurso a horas extraordinárias. E, finalmente, no pós-troika deu-se o corte dramático nas horas extraordinárias (que, afinal, eram permanentemente necessárias) – foi a machadada final que fez pulular como cogumelos entidades financeiro-empresariais prestadoras de saúde, os hospitais privados, que contratam médicos à peça, proletarizados, onde têm que eles próprios, por vezes, angariar clientes, e onde os plafonamentos impedem o pleno desenvolvimento das capacidades cientificas e técnicas dos médicos. Tudo isto esgarçou no SNS as relações de confiança; destruiu equipas; impediu a formação continuada; substituiu a qualidade do trabalho por métricas formais. E pode ter colocado assim em causa objectivamente o trabalho dos médicos, obrigando-os a subterfúgios, procedimentos e convivências com formas de organização do trabalho que eles mesmo, no seu âmago, considerariam sem sentido, levando assim ao sofrimento ético.
Não havia sofrimento ético numa aldeia perdida em 1975 onde um médico recém formado ia no Serviço Médico à Periferia com poucos meios possíveis, mas com autonomia e relações de confiança, e fazia tudo o que estava ao seu alcance. Há sofrimento ético quando se sabe que existem meios, ainda que finitos, mas a má organização do trabalho impõe práticas que são contrárias ao sentido do trabalho.
Hoje temos incomparavelmente mais capacidade instalada potencial do que em 1975 e, no entanto, a desmotivação e desrealização aumentam. E a consciência desse facto é fundamental para superar o sofrimento ético – só conhecendo o grau de “conivência”, ainda que inconsciente, com a má organização do trabalho se pode superar a mesma. Idem para outras profissões, como os docentes, já por nós estudados – passar de ano um aluno que não aprendeu, participar na avaliação de desempenho “avaliando” os colegas, implica algum grau de cumplicidade do docente que pode levar ao sofrimento ético.
A pandemia teria sido um momento para repensar o SNS. Em vez disso, todos os dramas da organização do trabalho no SNS parecem ter-se agravado – no imediato, em 2020, saíram, pensa-se, 300 médicos do SNS para o sector privado. O contraste com o período da revolução dos cravos é óbvio – neste tempo de pandemia não houve uma visão de baixo para cima, os profissionais de saúde estão na linha da frente, mas não foram chamados a ser parte nas decisões e soluções do SNS como um todo.
O apelo ao confinamento da população é uma forma desesperada de combater o sofrimento que se vive nos hospitais, e de salvaguardar ainda algumas réstias de energia. No imediato, estas medidas poderão eventualmente ajudar a suportar o período de crise que atravessamos, embora o seu real impacto seja alvo de discussões que não se podem ignorar. Mas, sem medidas importantes para aliviar o sofrimento dos profissionais de saúde que mexam no âmago da organização do trabalho, a médio e longo prazo as novas medidas de confinamento não passarão, na realidade, de um paliativo no sofrimento no trabalho. Apenas poderão aliviar de forma passageira o mal-estar, mas não resolverão o problema do sofrimento ético, cujas causas são mais profundas.
Daqui em diante será necessário exigir ao país uma transformação da organização do trabalho que permita aos profissionais de saúde trabalhar com dignidade. Essa exigência terá que incluir nessa mudança os próprios profissionais de saúde como actores da definição das melhores condições laborais, que conduzirão – porque os envolvem nas decisões de forma democrática e co-responsável – às melhores práticas em saúde.
Investigadores, Membros do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho, Universidade de Paris (UP), FCSH/UNL