Manuel saiu da rua, está a trabalhar, mas como pagar uma renda sozinho?
Um lento mas consistente processo de integração levou-o da rua a um contrato sem termo, mas ainda não deu o salto do projecto de apartamento partilhado para o seu espaço. Sexto capítulo de série sobre inclusão laboral, em dose dupla.
Se o preço das rendas não tivesse disparado, Manuel Leite já não estaria num apartamento partilhado com outras pessoas com experiência de rua. Ganha o salário mínimo, faz os seus descontos, paga pensão de alimentos à filha, que só conheceu depois de se inserir no mercado de trabalho.
Um caminho atribulado até aos 48 anos. “Aos 16 já estava agarrado à heroína”, lembra. “Algumas doutoras da Segurança Social, a Olga Rocha e a Paula França, tiraram-me da rua. Estive três anos ou mais numa pensão.” Foi-lhe atribuído um gestor de caso: um técnico da Associação para o Planeamento da Família, que ficou responsável por acompanhar o processo dali em diante.
Livrou-se das drogas de uso. Integrou a segunda formação de “Competências para a integração” de pessoas em situação de sem-abrigo desenvolvida pela Plataforma + Emprego em 2016, com uma componente de saber estar (respeitar horários, regras, hierarquias) e outra de cozinha. Como só tinha o 9.º ano, iniciou o processo de Revalidação, Validação e Certificação de Competências (RVCC) para ficar com o 12.º. Entretanto, foi integrado naquele apartamento de três quartos.
"Se há coisa que tenho de fazer é ajudar"
O apartamento é propriedade da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Foi cedido ao Núcleo de Planeamento e Intervenção em Sem-abrigo (NPISA) em 2017, como trampolim para ajudar pessoas com experiência de rua a “dar o salto” de um quarto de casa, pensão ou hospedaria, opções que o boom do turismo estava a arrasar.
Manuel partilhava-o com dois homens. Um mais velho, doente, sem uma perna, com uma baixa pensão de invalidez. E um mais novo, mais parecido com ele, com um passado de abuso de drogas e expectativa de inserção laboral. Houve toda uma intervenção técnica para que ali se respeitassem regras de convivência. “Gente da rua a viver na mesma casa não é fácil.”
Devagarinho, Manuel estava a organizar a vida. “Atribuíram-me técnico de manutenção”, diz ele. “A minha formação [a esse nível] foi ter nascido numa família que tinha oficinas de torneiro mecânico e ter desenvolvido isso. Tenho habilidade. Faço de tudo. Tudo o que há numa casa, eu sei arranjar. Pichelaria, pintura, tudo. Também faço cozido à portuguesa e costelas grelhadas.”
Em 2018, cumpriu um Contrato Emprego e Inserção +, trabalho socialmente útil em troca de uma bolsa, na Cooperativa do Povo Portuense. Correu tão bem que em 2019 assinou um contrato sem termo. O Tribunal de Família e Menores lembrou-lhe que tinha uma filha de 15 anos e que o Estado o substituíra na pensão de alimentos. Estava na hora de assumir essa responsabilidade. “Mortinho para ter condições para ajudar estava eu! Se há coisa que tenho de fazer é ajudar!”
Só a vira quando fizera o teste de paternidade, era ela ainda um bebé. Houve um trabalho de aproximação. “Eu queria conhecê-la. Fiquei muito feliz. Ela é boa aluna. Estuda Artes”, diz. Quer compensá-la pela longa ausência. “Do pouco que ganho, pago a pensão da minha filha. O tribunal pede 100 euros. Eu dou-lhe mais. Partilho com a minha filha. Não posso pagar uma renda de 400 euros.”
"Querem que ande para trás?!"
Nos últimos meses, sentiu o chão tremer. A Santa Casa aliou-se à Escola Superior de Santa Maria e à SAOM – Serviços de Assistência Organizações de Maria para desenvolver o Porto Sentido – Habitação, Capacitação, Reinserção. E decidiu atribuir aquele apartamento a esse projecto. Era preciso desocupá-lo. Propuseram-lhe que integrasse o novo projecto, partilhando outro apartamento com outras pessoas.
Primeiro, Manuel disse que sim. Sujeitou-se ao apurado processo de selecção. Depois, disse que não. “Em vez de andar para a frente, querem que ande para trás?!’ Estou a partilhar uma casa com dois e querem que vá partilhar com quatro?” Ficou revoltado. “Andei tanto para sair da droga. Querem que vá partilhar casa com pessoas que usam drogas? Se fosse para ali, ia dar-me mal. Eu conheço-me. Preferia ir para a rua.”
A sua expectativa era sair dali para algo melhor. Gostava de ter um espaço onde pudesse receber a filha ao fim-de-semana. Candidatara-se a uma casa da câmara, mas o processo fora indeferido. E não conseguia ver uma alternativa. Estava a descompensar. “Estou a construir uma salamandra. Vou pôr umas rodas. Estaciono ao pé da câmara. Monto uma barraca. Já vivi tantos anos na rua…”
Ao que esclareceu a Santa Casa, aquele espaço passou para o Home4Homeless, um projecto de apartamentos partilhados que está a desenvolver em parceria com a Benéfica e Previdente, com financiamento do Estado, o que permitirá dar continuidade ao trabalho que estava a ser feito. Ressalva “que a Misericórdia do Porto assegurou, durante três anos, todo o funcionamento dos dois apartamentos cedidos ao NPISA.” Agora, há verba para projectos dessa natureza. A aposta da nova Estratégia Nacional Para a Integração de Pessoas Sem Abrigo (2017-2023) é a habitação de longa duração.
Manuel tem seis meses, prorrogáveis, para encontrar uma solução. Enfrentará o drama de muitos trabalhadores pobres, mas com uma estrutura emocional e familiar fragilizada por anos de drogas e rua. Terá de recorrer ao Porto Solidário, o programa municipal de apoio à renda, outra medida temporária, de partilhar um apartamento no mercado regular com familiares ou amigos, ou de ir morar para mais longe do trabalho. Para já, só consegue ver uma hipótese: habitação social. “Eu tenho uma filha, queria ajudar a criá-la, queria ajudá-la a ir para a universidade. É difícil entender?”