Depois de anos de experiência de rua, Ana encontrou trabalho, amor e casa
Fez parte do projecto-piloto de Formação para Pessoas Sem Abrigo que arrancou no Porto no final de 2014. Hoje, trabalha na retaguarda do apoio domiciliário. Sexto capítulo da série sobre inclusão laboral, em dose dupla.
Há um antes e um depois da Plataforma + Emprego na vida de Ana Alves. Antes da P+E, dias devotados às drogas e noites mal dormidas em vãos de escada, entradas de prédios, prédios devolutos, pensões de fim de linha. Depois da P+E vieram os dias de trabalho árduo, primeiro precário, agora estável, e noites de descanso na pequena casa que partilha com o companheiro.
“Perdi muitos anos da minha vida”, diz a mulher, de 46 anos, toda vestida de branco, encolhendo-se num cadeirão azul. Entre os 18 e os 40 anos, uma intermitência de drogas, desintoxicações, recaídas, sem que a mãe desistisse dela, lhe trancasse a porta. “Se fosse hoje em dia, não fazia nada, nada, nada do que fiz. Fazia tudo, tudo, tudo como faço agora.”
O que Ana faz agora é trabalhar na associação mutualista Benéfica e Previdente. Estreou-se na lavandaria, passou para a cozinha, na retaguarda do serviço de apoio domiciliário e outras valências. “Adoro estar aqui. Além de gostar de cozinhar, gosto de aprender.” Todos os anos, ali mesmo, horas de formação. “Aprendi a fazer bolo de chocolate, bolo de laranja, formigos, tanta coisa!”
Competências para a integração
Tudo começou na primeira Estratégia Nacional para a Integração da Pessoa Sem Abrigo (2009-2015). Na rede interinstitucional que então se montou no Porto, surgiu a ideia de seleccionar pessoas com perfil de empregabilidade e identificar empresas ou instituições que lhes pudessem dar trabalho.
A P+E envolvia várias entidades do Núcleo de Planeamento e Intervenção em Sem-Abrigo (NPISA) do Porto e era coordenada por Jorge Mayer, voluntário e gestor da EDP, Alfredo Figueiredo Costa, então coordenador da Welcome Home, e Olga Rocha, técnica da Segurança Social. A adesão do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) permitiu ir além da agência de emprego, desenvolver um projecto-piloto de formação adaptada.
“Houve grande abertura do IEFP, que assumiu o desafio de, connosco, fazer pela primeira vez uma formação dedicada aos sem-abrigo”, recorda Mayer. Atendendo à motivação frágil, ao medo de assumir compromissos de longo prazo, à dificuldade em cumprir horários e regras, idealizaram um percurso curto, a que chamaram “Competências para a integração”. Combinaram essa formação, centrada na expressão corporal e teatral, com formação em jardinagem. “Havia muita flexibilidade. Os horários eram combinados com as pessoas. Elas não perdiam o apoio se faltassem.”
A primeira edição, de que Ana fez parte, decorreu em 2014/2015. Naquela altura, já não dormia onde calhava. Com a ajuda da Arrimo – Organização Cooperativa para Desenvolvimento Social e Comunitário, trocara a heroína pela metadona e passara a dormir numa pensão, que pagava com o Rendimento Social de Inserção (RSI) e a acção social. Não consumia cocaína havia dois meses. E, desta vez, não haveria de voltar atrás. Estava cansada daquela servidão.
O luxo de ter uma casa
Eram 20 pessoas com fraca escolaridade e pouca experiência de trabalho. “Era para a gente ter a responsabilidade de se levantar, de aparecer a horas.” E Ana “até gostava de ir, de ter horários, de ter aquelas pessoas a apoiar”. Dava por ela a pensar: “Eu não tenho nada, mas se começar a construir alguma coisinha devagarinho...”
Só 15 chegaram ao fim. Ana e outros três assinaram um Contrato Emprego Inserção +, um programa de trabalho socialmente necessário destinado a beneficiários de RSI. Dois seguiram para trabalho temporário, dois para o Centro de Reabilitação Profissional, um para um curso de educação e formação, três para comunidades terapêuticas.
Durante um ano, Ana arrancou ervas daninhas e fez pequenas podas em troca de uma bolsa. Naquelas tarefas conheceu o companheiro, que também integrava um CEI+ na Câmara do Porto. Ele nunca consumiu drogas e isso encorajou-a. “Pedi ao enfermeiro para me reduzir a metadona. Quando cheguei às duas gotas, deixei. Graças a Deus, até hoje.”
Arrendaram um pequeno apartamento. “Nunca tinha tido uma casa!” Um luxo meter a chave na porta e entrar quando quer. Não têm muitas horas para namorar. Ela trabalha das 7h às 15h ou das 8h30 às 16h. Ele vai trabalhar antes das 20h e volta depois das 4h. “Tanto anda com a carrinha a apanhar lixo como anda a varrer.” Aproveita as horas que têm. Nunca tinha tido uma relação assim, em que pudesse ser ela e pudesse ser parte de uma união, partilhar a vida, imaginar um futuro, construí-lo. “Eu hoje sou uma pessoa feliz.”
Não a largaram. Findo o CEI+, os membros da P+E desdobravam-se em contactos para a recolocar e aos colegas. Ela ainda cumpriu um contrato temporário na Agência de Desenvolvimento Integrado de Lordelo do Ouro, regressou ao RSI e assinou um CEI+ com a Benéfica antes de ficar efectiva.
O seu grupo não foi o único. Seguiram-se outras três edições da formação destinada a pessoas sem-abrigo – com mais horas, estágio integrado, menos sucesso. Em 2018, uma candidatura a fundos europeus foi preparada pelos parceiros e encabeçada pela Santa Casa da Misericórdia do Porto. A P+E passou a ter dois técnicos a tempo inteiro.
IEFP “tem estado ausente"
Ao que diz Jorge Mayer, na primeira fase, 42 pessoas assinaram contratos de trabalho. Nesta segunda, 30. E correu bem. “Em 72 pessoas, tivemos problemas com duas. Uma ficou a trabalhar na mesma entidade, mas mudou de sector. Outra teve uma série de faltas injustificadas.”
Em 2018, quando a câmara assumiu a coordenação do NPISA, o eixo do emprego passou para a alçada do IEFP. Mayer aplaude a acção da autarquia, não do IEFP. “O IEFP tem estado ausente”, lamenta. “Há um ano que não há reunião. Deixaram de responder a emails e a telefonemas.” E isto “tem impacto na missão comum”. Um projecto com resultados perde eficácia por motivos que lhe são alheios. “Continuamos a tentar inserir pessoas no mercado de trabalho, mas queríamos fazer formação e não estamos a fazer. Esta formação precisa do IEFP”, esclarece.
Ninguém, ali, quer deixar de ajudar a realizar histórias como a de Ana. “Nós podemos ser úteis para a sociedade”, enfatiza ela. “Falo por mim. Eu sou um exemplo. A gente tem de acreditar em nós, mas tem de haver alguém que também acredite… É preciso dar oportunidade”, diz ainda. “Há pessoas que são ajudadas, vão pedir trabalho aqui e acolá e, pelo anterior delas, não lhes dão trabalho. Deixam outra vez de acreditar em tudo.”